Jacinto Flecha
Não consta no meu
programa incluir nestas crônicas assuntos teológicos, filosóficos, religiosos
de modo geral. Mas, para meus objetivos de hoje, vou apenas lembrar que os dez
mandamentos se resumem em dois: Amar a Deus sobre todas as coisas; Amar ao
próximo como a si mesmo. Você encontra isso facilmente nos evangelhos e no
catecismo, e lembro também que a caridade deve ser feita ao próximo por amor a
Deus. Fazer um benefício a qualquer pessoa ou grupo, sem ter em vista o amor a
Deus, pode ser muitas coisas, não será caridade – Deus caritas est.
Dou-lhe um exemplo, para não
deixar margem a dúvidas. Imagine duas pessoas exercendo no mesmo local as
mesmas funções e atividades. Uma é enfermeira, faz curativos, aplica medicamentos,
mede a temperatura e pressão – as tarefas habituais do seu ofício. No fim do
mês ela recebe o salário combinado, e ninguém lhe deve nada a mais pelo seu
trabalho. A outra é religiosa consagrada a Deus, com vida conventual, e dedica
todo o tempo disponível a cuidar de enfermos nesse mesmo hospital. Presta em
geral os mesmos serviços da enfermeira, mas no fim do mês ninguém lhe paga um
salário por sua atividade, e a subsistência dela é provida pela entidade
religiosa à qual pertence. Não lhe parece natural só a religiosa ser conhecida
como irmã de caridade? Não se trata apenas de receber ou não um
salário, pois a enfermeira, mesmo sendo remunerada, pode incluir no trabalho
uma intenção, uma dedicação extra, que o eleva a outro nível. A principal diferença
é a intenção com que ajudam os necessitados.
Se alguém cria com recursos
próprios uma fundação destinada a cuidar de menores abandonados ou outro grupo
de necessitados, presta um bom serviço à coletividade. Mas será puramente
filantropia (a etimologia já indica uma dedicação ao ser humano), e não
caridade, quando o amor a Deus está ausente da intenção. É claro que Deus quer
esses benefícios, mas cabe ao benfeitor reportar-se a Ele, para seu gesto de
benemerência merecer o nome de caridade.
Alguém pode contestar-me,
alegando que a drástica redução das doenças e calamidades se deu pela ação do
homem. Quase não existem mais a fome, doenças sem tratamento, pobreza,
mendigos. Bem sei que esse progresso foi bom, e deve ser elogiado, mas o que
estou discutindo é outra coisa – a intenção. Se faltou nesse progresso a
intenção de agradar a Deus, não se pode falar em caridade. E se Deus é
esquecido, pode retribuir na mesma moeda, retirando suas bênçãos de obras
assim.
Aonde quero chegar, com estas
considerações? Se você pensou em flechas, não está longe do meu objetivo. E
agora só falta fazer a pontaria e atirar.
Antigamente os pobres
pediam uma esmola pelo amor de Deus. Recebendo-a, agradeciam com a
fórmula clássica: Deus lhe pague. Raramente se ouvem hoje essas
formas de pedido e agradecimento. Os pedidos mais educados limitam-se ao me
dá um trocado. E o agradecimento educado, quando existe, não passa do obrigado.
Não lhe parece que até os mendigos já não pensam mais em Deus? Não é raro,
aliás, ouvir desaforos ou xingamentos quando alguém nega esmola a um deles. Há
mesmo os que protestam quando recebem esmola inferior à que desejavam.
Portanto, de parte a parte cresce e prolifera o esquecimento de Deus. Não deve
surpreender, quando se sabe que quase tudo no mundo conspira contra o amor a
Deus.
Você já notou que os mendigos
estão desaparecendo das ruas? Será que já não precisam de esmola, enriqueceram?
Uma explicação me parece estar no mau costume de não dar esmolas, propagandeado
por ideólogos ateus com base em slogans como Assistência social, um direito
do cidadão e um dever do Estado. Com base nessa cantilena, muitos deixaram
de ajudar os pobres. Tornando-se difícil para estes obter o que antes era bem
fácil, tiveram de baixar em outra freguesia. Mas ninguém ignora a grande
eficiência do governo em atividades assim, e os pobres vão se amontoando em
albergues, asilos, orfanatos, onde lhes dão uma caricatura do amor ao próximo
que antes recebiam.
Quando se retira do horizonte
o amor a Deus, o amor ao próximo sozinho não se sustenta. É muito cômodo
transferir essa responsabilidade para o governo – um ente anônimo, que na
prática significaninguém. Um pequeno passo adiante, e logo surgem muitos
que, ao invés de cumprir o que se espera dos responsáveis pela assistência aos
necessitados, passam a utilizar em benefício próprio os recursos destinados a
essa assistência. E aí temos o fim da linha. Começando pela falta do amor a
Deus – que, aliás, não se restringe a esse aspecto assistencial – a decadência
vai logo da filantropia à corrupção e pilantragem, bem merecendo o
qualificativo de pilantropia.
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