terça-feira, 13 de outubro de 2015

Da caridade à pilantropia

Jacinto Flecha

Não consta no meu programa incluir nestas crônicas assuntos teológicos, filosóficos, religiosos de modo geral. Mas, para meus objetivos de hoje, vou apenas lembrar que os dez mandamentos se resumem em dois: Amar a Deus sobre todas as coisas; Amar ao próximo como a si mesmo. Você encontra isso facilmente nos evangelhos e no catecismo, e lembro também que a caridade deve ser feita ao próximo por amor a Deus. Fazer um benefício a qualquer pessoa ou grupo, sem ter em vista o amor a Deus, pode ser muitas coisas, não será caridade –  Deus caritas est.

Dou-lhe um exemplo, para não deixar margem a dúvidas. Imagine duas pessoas exercendo no mesmo local as mesmas funções e atividades. Uma é enfermeira, faz curativos, aplica medicamentos, mede a temperatura e pressão – as tarefas habituais do seu ofício. No fim do mês ela recebe o salário combinado, e ninguém lhe deve nada a mais pelo seu trabalho. A outra é religiosa consagrada a Deus, com vida conventual, e dedica todo o tempo disponível a cuidar de enfermos nesse mesmo hospital. Presta em geral os mesmos serviços da enfermeira, mas no fim do mês ninguém lhe paga um salário por sua atividade, e a subsistência dela é provida pela entidade religiosa à qual pertence. Não lhe parece natural só a religiosa ser conhecida como irmã de caridade? Não se trata apenas de receber ou não um salário, pois a enfermeira, mesmo sendo remunerada, pode incluir no trabalho uma intenção, uma dedicação extra, que o eleva a outro nível. A principal diferença é a intenção com que ajudam os necessitados.

Se alguém cria com recursos próprios uma fundação destinada a cuidar de menores abandonados ou outro grupo de necessitados, presta um bom serviço à coletividade. Mas será puramente filantropia (a etimologia já indica uma dedicação ao ser humano), e não caridade, quando o amor a Deus está ausente da intenção. É claro que Deus quer esses benefícios, mas cabe ao benfeitor reportar-se a Ele, para seu gesto de benemerência merecer o nome de caridade.

Alguém pode contestar-me, alegando que a drástica redução das doenças e calamidades se deu pela ação do homem. Quase não existem mais a fome, doenças sem tratamento, pobreza, mendigos. Bem sei que esse progresso foi bom, e deve ser elogiado, mas o que estou discutindo é outra coisa – a intenção. Se faltou nesse progresso a intenção de agradar a Deus, não se pode falar em caridade. E se Deus é esquecido, pode retribuir na mesma moeda, retirando suas bênçãos de obras assim.

Aonde quero chegar, com estas considerações? Se você pensou em flechas, não está longe do meu objetivo. E agora só falta fazer a pontaria e atirar.

Antigamente os pobres pediam uma esmola pelo amor de Deus. Recebendo-a, agradeciam com a fórmula clássica: Deus lhe pague. Raramente se ouvem hoje essas formas de pedido e agradecimento. Os pedidos mais educados limitam-se ao me dá um trocado. E o agradecimento educado, quando existe, não passa do obrigado. Não lhe parece que até os mendigos já não pensam mais em Deus? Não é raro, aliás, ouvir desaforos ou xingamentos quando alguém nega esmola a um deles. Há mesmo os que protestam quando recebem esmola inferior à que desejavam. Portanto, de parte a parte cresce e prolifera o esquecimento de Deus. Não deve surpreender, quando se sabe que quase tudo no mundo conspira contra o amor a Deus.

Você já notou que os mendigos estão desaparecendo das ruas? Será que já não precisam de esmola, enriqueceram? Uma explicação me parece estar no mau costume de não dar esmolas, propagandeado por ideólogos ateus com base em slogans como Assistência social, um direito do cidadão e um dever do Estado. Com base nessa cantilena, muitos deixaram de ajudar os pobres. Tornando-se difícil para estes obter o que antes era bem fácil, tiveram de baixar em outra freguesia. Mas ninguém ignora a grande eficiência do governo em atividades assim, e os pobres vão se amontoando em albergues, asilos, orfanatos, onde lhes dão uma caricatura do amor ao próximo que antes recebiam.

Quando se retira do horizonte o amor a Deus, o amor ao próximo sozinho não se sustenta. É muito cômodo transferir essa responsabilidade para o governo – um ente anônimo, que na prática significaninguém. Um pequeno passo adiante, e logo surgem muitos que, ao invés de cumprir o que se espera dos responsáveis pela assistência aos necessitados, passam a utilizar em benefício próprio os recursos destinados a essa assistência. E aí temos o fim da linha. Começando pela falta do amor a Deus – que, aliás, não se restringe a esse aspecto assistencial – a decadência vai logo da filantropia à corrupção e pilantragem, bem merecendo o qualificativo de pilantropia. 
Título, Imagens e Texto: Jacinto Flecha, ABIM, 10-10-2015

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