Jacinto Flecha
Uma notável coincidência
ocorreu nos dois únicos julgamentos de que participei como jurado. No primeiro,
o crime fora consequência de um roubo pequeno. Estava mais do que provado, mas
um dos jurados se obstinava em absolver o réu. Insistimos para que reconsiderasse
sua decisão, mas ele se explicou:
— Sei que o crime está
provado. O réu nega, como todo réu, mas do meu ponto de vista o crime foi
cometido para roubar quantia pequena, o réu não passa de um ladrão de galinhas. O que considero
errado é isso. Não vale a pena condenar alguém por motivo tão insignificante. E
também não vale a pena arriscar-se por quantia tão pequena. Se quer roubar, o melhor é roubar pra valer.
Haveria muitos argumentos
contra a posição assumida pelo meu colega jurado, mas de qualquer forma ele
seria voto vencido, e ninguém quis perder tempo com argumentos desnecessários e
inúteis.
Evidentemente não concordei
com a posição dele, fiquei espantado com o cinismo. Confirmada a sentença de
condenação, saí do tribunal interessado em saber se ele só condenaria
criminosos que fossem grandes ladrões. Não esses ladrões de quase nada, que
também não dispõem de grandes quantias para pagar bons advogados e “outras
despesas”. Tentei reencontrar o autor da frase, para conversarmos um pouco, mas
não consegui.
Muito tempo depois, fui
convocado para jurado do crime cometido por um funcionário público, acusado de
desviar dinheiro do paquiderme estatal. Desvio grande, confirmado por uma série
de depoimentos, documentos e fatos conexos.
Quando o acusado sentou-se no
banco dos réus, não o reconheci imediatamente, mas a leitura do nome e outros
dados não deixaram dúvida – era o jurado autor daquela frase, que agora ocupava
a posição de réu, exatamente oposta à anterior. A incrível coincidência de eu
estar ali para julgar aquele réu, depois de ter participado ao lado dele no
julgamento de outro, trazia-me à memória a frase cínica: Se quer roubar, o melhor é roubar pra valer! Tudo confirmava que
não era um ladrão reles, mas ladrão de grandes quantias. E a frase dele incluía
a certeza de que se pode usar parte dessas grandes quantias para pagar bons
advogados, ter cúmplices no corpo de jurados, comprar o que seja necessário,
talvez até a parcialidade do próprio juiz.
Durante todo o julgamento o
réu se mantinha tranquilo, como quem tem certeza da sua inocência. Ou de ser
inocentado... A tranquilidade dele e os seus sorrisos para os jurados sugeriam
não só a inocência, mas a certeza da absolvição. Houve belas entonações no
discurso do advogado de defesa, até mesmo por ser patente no réu a
tranquilidade e paz de espírito, que só se encontra no inocente.
Votei pela condenação, pois os
autos do processo não deixavam margem a dúvidas. Mas quase todos os outros
jurados o absolveram, a sentença foi lavrada, e o acusado saiu inteiramente
livre.
Certamente o leitor não ignora
o comentário de que no Brasil só existe
cadeia para ladrão de galinhas. Explica-se, por ser o dinheiro do rico
usado para comprar sua defesa: bons advogados, testemunhos favoráveis bem
remunerados, produção fraudulenta de provas, comparsas no banco dos jurados,
até juízes corruptos. O segundo réu (e também jurado no primeiro caso), que
enriqueceu com o roubo de quantia vultosa, certamente usou parte dela para
defender-se, e foi absolvido.
Se o ladrão é dos grandes,
principalmente se pertence a uma grande quadrilha, tudo que é comprável está à
sua disposição. Seus comparsas procuram evitar uma condenação; e se ele é
condenado a uma multa ou devolução de grande quantia, podem se quotizar numa
“vaquinha” para pagá-la. Ninguém pode incriminar os que gastam dinheiro para
tirar de apuros um amigo; mesmo se tudo indicar que usam para isso o dinheiro
roubado, e depois distribuído entre os comparsas para esse efeito.
Imagine que uma quadrilha
roubou cem milhões, e durante o processo só se conseguiu incriminar o réu no
roubo de dez milhões. É claro que não faltará dinheiro para a restituição.
Seria muito natural exigir do culpado a restituição integral, mas muitas vezes
os responsáveis até “se esquecem” de requerê-la. Também é evidente que não
faltará dinheiro para os parceiros cobrirem eventuais multas e outras despesas.
É muito estranho não se levantar suspeitas sobre amigos tão prestimosos.
Investigadores que farejam tanta coisa poderiam até farejar um provável caixa comum
desse dinheiro. Em termos mais atuais, investigar de qual cueca saiu esse
dilúvio de doações.
Se esses fatos e comentários
lhe fazem lembrar assuntos recentes do nosso noticiário, esteja certo de que
não se trata de acaso.
Em tempo: O texto inicial é
adaptado de uma crônica de Machado de Assis, intitulada Suje-se gordo. Veja que o problema é bem antigo. E só tem
aumentado...
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