terça-feira, 17 de novembro de 2015

Comida de avião


Flavio Quintela
Passei a adolescência e juventude inteiras chamando meus amigos por vocativos carinhosos como bicha, veado, boçal, retardado, jumento e outros do mesmo calibre. Em retribuição ouvia não só as mesmas coisas, como outras como lupa (referência à minha miopia de dois dígitos), baleia (fui gorducho até os 12 anos de idade), CDF etc. Para nós, moleques no final da década de 80, era impossível ver o Ney Matogrosso ou o Clodovil na televisão e não gritar, quase que num ato reflexo, “bicha louca!”

As coisas mudaram. Naquela época, colocar um brinco significava ser devidamente atormentado por meses a fio, e receber uma quantidade redobrada de apelidos. Hoje, quem xinga o goleiro do time adversário de veado e é pego pelas câmeras de televisão pode acabar tendo a vida destruída pelos ativistas das mídias sociais. Um professor esquerdista típico é capaz de criar um ciclo de palestras para festejar seu aluno pré-adolescente que resolveu se assumir homossexual, e formalizar um pedido de suspensão do outro que disse, baixinho, “bicha”.

A ditadura do politicamente correto, um dos filhotes mais feios e chatos da esquerda, acabou com a graça da vida. Seu lema principal é o “não pode”. Não pode caçoar da obesidade, da miopia, da opção sexual, da inteligência, da falta dela, da estatura, do cabelo, da careca, da cor, da etnia, dos trejeitos, do jeito desengonçado, da gagueira, da falta de habilidade e da idiotice de ninguém. Junto com essa vitimização veio também o desprezo pela beleza, pela estética, pela arte e pela verdade. O relativismo agigantou-se e fez uma inversão que jamais poderíamos esperar ou desejar: o belo tornou-se desprezível e o feio cultuável; a genialidade é loucura, e a mediocridade é desejável; o esforço é para idiotas, e o direito imerecido é para todos. Não é preciso ser muito inteligente para perceber que esse tipo de pensamento é baseado fundamentalmente em um sentimento torpe: a inveja. Afinal, se não posso ser belo, desprezarei quem o é e exaltarei meus semelhantes. Se me falta a genialidade, retratarei os gênios como loucos e diminuirei suas conquistas. Se criar a verdadeira arte me é impossível, criarei qualquer lixo e o elevarei ao patamar de obra-prima. Isso é o que qualquer invejoso faz sozinho; o problema é quando muitos invejosos, juntos, ditam o ambiente cultural de uma nação – em grupo eles se protegem, se reforçam e ocupam espaços importantes, mudando os critérios de forma a agradar a si mesmos e a seus pares.

Esse é um dos grandes problemas do Brasil de hoje, e um difícil de resolver. Deixamos que os invejosos ocupassem muitas posições importantes e que ditassem muitas regras que sequer deveriam existir. E invejosos são como qualquer outro ser vivo da natureza: eles geram outros invejosos.

Escrevi este texto durante um voo para o Brasil, impactado por uma imagem que jamais sairá da minha mente, infelizmente. É a de um sujeito muito gordo e nu, sentado no chão e lambuzado de azeite de dendê. Ele chama aquilo de arte, e eu nem sei do que chamar. Afinal, se eu disser que ele é um gordo enorme, serei gordofóbico; se disser que as tetas dele são maiores que as de uma índia, estarei desrespeitando os nativos; se disser que aquilo é nojento, é capaz de ser acusado de preconceito contra os baianos, já que eles apreciam muito o tal azeite. E assim, como todo mundo faz parte de uma minoria a ser protegida, ninguém mais pode dar boas risadas do ridículo alheio.

Vasculhando minha mente, lembro-me de uma categoria de pessoas que ainda não foi descoberta pelos xiitas do politicamente correto, e que renderiam boas risadas: as pessoas que gostam de comida de avião. Pena que eu sou uma delas. 
Título e Texto: Flavio Quintela é escritor, jornalista e tradutor. É autor dos livros “Mentiram (e muito) para mim” e “Mentiram para mim sobre o desarmamento”.

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