terça-feira, 10 de novembro de 2015

Semelhanças e diferenças

Jacinto Flecha

Encontrei na Internet umas fotos turísticas, entre elas uma do Tirol mostrando uma bela pedreira, e comentei com meus botões: Essa pedreira é igualzinha àquela da minha cidade!

Se você não conhece a cidade onde nasci, não sabe o que está perdendo. E se pretende conhecê-la, não saberá depois o que ganhou. Meus botões já haviam fornecido várias sugestões para uma ampla campanha publicitária destinada a desviar turistas do Tirol para lá, quando comecei a notar as diferenças. E vi-me obrigado a deixar meus botões em paz.

Não cansarei o leitor com a descrição das diferenças, que podem ser resumidas em dois qualificativos: caipirismo e civilização. Confio ao seu critério atribuir corretamente os qualificativos, assim me abstenho de influir na sua opção por fazer turismo no Tirol ou na minha cidade. Minha decisão é também preventiva, pois não sei o que acontecerá com minhas orelhas se alguém tomar decisões turísticas diferentes das minhas…

Comparar coisas, pessoas, ambientes, a fim de constatar, distinguir e entender as semelhanças e diferenças, eis um ótimo exercício mental. Cada um faz isso, implícita ou explicitamente, nas suas áreas de atenção e atuação. Estas duas últimas palavras, tão semelhantes na forma e tão diferentes no significado, conduzem-me a um passatempo interessante quando praticado criteriosamente, mas terrivelmente aborrecido se alguém o pratica sem propósito, a torto e a direito. Tenho constatado, aliás, que a maioria só sabe fazê-lo a torto. Refiro-me ao trocadilho.

Apresso-me em informar que eu também detesto o chamado trocadilho infame, distante do bom trocadilho tanto quanto o caipira em relação à civilização. Portanto, não vou impingir-lhe os aborrecimentos que já tive com esse horrível desmancha-prazeres. Relatarei apenas três ótimos trocadilhos, dois dos quais presenciei no meu tempo de colégio interno.

• No refeitório do colégio, cada mesa era ocupada por cinco estudantes de cada lado e um na cabeceira, este responsável pela disciplina local. Houve no colégio uma epidemia de trocadilhistas, todos competindo a toda hora para perpetrar o mais “infame”. A tal ponto que o disciplinário da cabeceira resolveu proibir trocadilhos naquela mesa, sob pena de o recalcitrante perder certas regalias no fim-de-semana. Ninguém se atrevia, mas um colega que atendia pelo apelido de Distinto achou jeito de fazer um ótimo trocadilho sem incorrer na punição.

As vasilhas com os alimentos eram transportadas por um servente em uma grande bandeja de madeira, e ele as colocava na cabeceira das mesas. Em seguida, cada um se servia. A sobremesa desse dia eram bananas, e na distribuição para os onze da mesa coube ao Distinto uma banana amassada. Ele a pegou, mostrou-a com cara triste ao Adílio (era este o nome do servente), e disse com voz chorosa:
— Troca, Adílio!

• Outro colega, que gostava de cutucar os professores, conseguiu entrar numa enrascada por causa de um trocadilho, mas saiu dela por meio de outro. Detoni era bom professor, mas muito exigente, e gostava de tripudiar sobre os coitados que não sabiam a lição. Começou a primeira aula do segundo semestre nestes termos:

— Então vamos iniciar o semestre.
O colega cutucador cochichou com outro:
— Sem mestre.

Mas o Detoni, além das referidas qualidades, tinha bom ouvido, e perguntou em tom agressivo:
— O que é que você disse aí?!
E o cutucador se desapertou com esta:
— Sim, mestre.

• Um amigo paulista não gosta de ar condicionado, mas o calor exigia algum tipo de refrescante. Instalou um ventilador numa mesa ao lado da escrivaninha, onde mantém os dicionários de uso mais frequente. Para os amigos que o visitam, explica:
— Este é o meu ar-com-dicionário.

O trocadilho joga com semelhanças e diferenças, tanto na forma quanto no conteúdo. Além disso precisa se encaixar bem nas circunstâncias ou no assunto da conversa, mas esta é uma qualidade geralmente ausente. Vem principalmente dessa falta o qualificativo de infame, pois equivale a umanota fora do tom. A palavra inglesa que designa trocadilho (pun) é onomatopaica, e lembra o choque desagradável que se tem quando alguém comete um trocadilho infame. 
Título, Imagem e Texto: Jacinto Flecha, ABIM, 9-11-2015

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