quarta-feira, 9 de dezembro de 2015

Estrela Serrano e a liberdade respeitosa

João Miguel Tavares
Um bom amigo informou-me que Estrela Serrano me tinha dedicado meia-dúzia de parágrafos no Vai e Vem, blogue que partilha com o actual ministro da Defesa Azeredo Lopes. O texto em causa intitula-se “Alguém falou em ética do comentário?” e critica-me por há uma semana eu ter usado o espaço desta página “para atacar um jornalista – Paulo Pena – e dois colunistas – Pacheco Pereira e Rui Tavares – todos da casa”.

Após declarar que os leitores do PÚBLICO têm “a expectativa de que o seu jornal não seja usado para que os colaboradores se ataquem uns aos outros e aos jornalistas da casa”, Estrela Serrano remete para um texto antigo intitulado “Uma ética para o comentário político, precisa-se!”, onde desenvolve a sua tese: “Não sendo confrontados e responsabilizados pelos seus escritos e falas, os comentadores gozam de uma impunidade inaceitável em democracia. E, no entanto, criam percepções, influenciam interpretações e (de)formam visões da realidade. A avaliar pelas aleivosidades [NR: Estrela Serrano queria dizer “aleivosias”] que se lêem e ouvem em jornais, rádios e televisões em espaços de comentário político, fica a convicção de que se trata de um poder sem responsabilidade.”

Há duas formas de olhar para isto. Uma, é desvalorizar, considerando que a opinião de Estrela Serrano está hoje confinada a um blogue e às páginas da Acção Socialista Digital. Não vou cometer tal indelicadeza. Prefiro antes valorizar as suas palavras, relembrando que Serrano foi membro da ERC durante o consulado socrático, e que essa mesma ERC era então dirigida pelo seu parceiro de blogue, hoje patrão do parque nacional de chaimites. Mais do que isso: esta visão da liberdade respeitosa não é uma idiossincrasia de Estrela Serrano – ela é partilhada por gente que a tentou impor entre 2005 e 2011, e que é bem possível que esteja cheia de vontade de a voltar a impor a partir de 2016.

Assinale-se que o blogue Vai e Vem tem como epígrafe “Não renunciarás à tua liberdade de expressão e de opinião”. Parece uma admirável ironia, mas ela não é inédita. A Constituição de 1933 também considerava, como direito de cada cidadão português, “a liberdade de expressão do pensamento sob qualquer forma” (artigo 8º). Só que depois (artigo 20º) alertava que incumbia ao Estado defender a opinião pública “de todos os factores que a desorientem contra a verdade, a justiça, a moral e o bem comum”. Ou seja, todos podiam exprimir-se à vontade, desde que não desorientassem os outros.

Ora, a grande preocupação de Estrela Serrano também são os “cidadãos mais desprevenidos”, que acabam por confundir “opiniões” com “factos reais”. Claro está que não deseja calar ninguém. Serrano quer apenas “regular” e “responsabilizar”. Se cada um de nós observa e estuda os assuntos à luz do seu interesse, “só uma entidade”, considerava o professor António de Oliveira Salazar, “tudo tem de ver à luz do interesse de todos”. Uma entidade reguladora da boa comunicação, por assim dizer.

Eu não devia ter de escrever isto 500 meses após o 25 de Abril. Mas quando alguém com as responsabilidades de Estrela Serrano classifica críticas públicas como “ataques”, considera que colunistas de um jornal não devem polemizar entre si, entende o exercício da livre opinião como uma “(de)formação” da realidade e crê ser competência do Estado proteger “cidadãos desprevenidos”, é preciso voltar ao bê-á-bá da liberdade de expressão, para a defender dos que só gostam dela bem composta e penteada. 
Título e Texto: João Miguel Tavares, Público, 9-12-2015

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