Paulo Tunhas
Uma
pessoa pode respeitar e admirar Passos ou Cavaco sem os querer, nos subtis
prazeres intelectuais, iguais a nós. Basta reconhecer neles a vontade de
respeitar as paixões comuns da nossa sociedade.
Há uma passagem de A
teoria dos sentimentos morais, de Adam Smith, que dá verdadeiramente
vontade de pensar a partir dela. Adam Smith nota que para alguém que, desde o
seu nascimento, tivesse vivido em perfeito e absoluto isolamento de qualquer
forma de sociedade, os objectos das suas paixões (hoje em dia, dir-se-ia:
emoções), os corpos exteriores que lhe dessem prazer ou o ferissem ocupariam
toda a sua atenção. As paixões propriamente ditas, os desejos ou as aversões,
as alegrias ou as tristezas que esses objectos excitariam, dificilmente
poderiam ser objecto dos seus pensamentos. A ideia delas nunca o poderia
interessar ao ponto de chamar a sua atenção.
A ideia não é, é claro,
inteiramente nova, mas o século XVIII, que se ocupou talvez mais do que
qualquer outro com a reflexão sobre a sociabilidade dos seres humanos, permitiu
a Adam Smith exprimi-la de uma forma particularmente feliz. Se se quiser uma
ilustração quase caricatural da tese, basta pensar na história de Tarzan e de
Jane. Jane inspirou, sem dúvida, segundo a lenda, sentimentos muito elevados a
Tarzan. Mas é um bom bocado difícil imaginar Tarzan, sozinho depois do primeiro
encontro, confortavelmente instalado no galho de uma árvore e fumando
sonhadoramente um cigarro, enquanto à sua volta leões rugiam e os restantes
animais da selva emitiam os ruídos que lhes compete emitir, pensar para si
mesmo algo como: “Jane, estou loucamente apaixonado por ti”.
A vida em sociedade
permite-nos indiscutivelmente estes pequenos prazeres desconhecidos de Tarzan.
E não existe, é claro, vida em sociedade sem uma partilha de paixões (medos,
alegrias, e por aí adiante) entre os seus membros, paixões essas que variam nos
seus modos de sociedade para sociedade, às vezes variando tanto que há quase
uma radical incompatibilidade entre uns modos e outros. Os tempos que vivemos
dão-nos demasiados exemplos dessas incompatibilidades para não ser necessário
elaborar muito na matéria. Ou antes: é até muito preciso elaborar muito na
matéria, para percebermos com algum discernimento o que se passa e que corre,
ou corria, sob a designação de “choque de civilizações”. Mas não é isso que me
interessa aqui, neste momento.
O que interessa é que, de
facto, o nosso contacto com a realidade social (e não apenas com esta, de
resto) se parece fazer, de um modo muito mais vasto do que normalmente se
pensa, através de um filtro emocional que dita o grosso dos nossos comportamentos.
Em jargão filosófico, através de desejos de segunda ordem, ou desejos de
desejos. E que uma sociedade só subsiste se houver uma comunidade assaz extensa
desse tipo de desejos. A não existir tal comunidade, a sociedade dificilmente
sobrevive.
Ora, sendo os seres humanos
aquilo que são, há quase fatalmente dois tipos de atitude face a essa partilha
de desejos reflectidos, de desejos de segunda ordem, de desejos de desejos. Uma
das atitudes possíveis aceita uma grande flexibilidade na simpatia que nos une.
Vivemos em sociedade, mas, dentro de uma certa comunidade de desejos, há margem
para uma grande diversidade nas suas manifestações. Apesar de tudo, não somos
todos uma única pessoa. Somos muitas pessoas, vivendo contiguamente, e
partilhando semelhanças (a começar, obviamente, a da língua), mas muito
diferentes entre si. Aceitar essas diferenças é fundamental.
A outra atitude leva a
exigência da comunidade das paixões a um patamar muito mais elevado. É como se
a exigência da semelhança adquirisse proporções inauditas, a tender para a
quase identidade. Um pouco à maneira do gosto estético: como se nos sentíssemos
no direito de exigir que todos os outros partilhassem o nosso. Qualquer posição
contrária à nossa se veria afectada de uma ilegitimidade fundamental, tanto
moral como política. É a atitude dos entusiastas, que exigem uma feroz
unanimidade em quase tudo.
Admito perfeitamente que possa
ser exagero meu, embora duvide. Na nossa sociedade, é a chamada “esquerda”, ou
uma boa parte dela, que adopta maioritariamente a segunda atitude. Não é só a
manifesta tendência a supor a radical ilegitimidade daqueles que não partilham
o modo como as paixões comuns são por ela concebidas. É a própria adopção de um
entendimento quase estético da comunidade das paixões que vê a luz do dia e que
conduz a uma indisfarçável arrogância e a uma agressividade militante. Basta
pensar no que se disse, e se diz, de Cavaco e de Passos, entre outros. O
desgosto face a eles exprime-se muito reveladoramente numa linguagem que, muitas
vezes, é quase apenas a do desgosto estético. A maneira como se vestem, os
lugares onde moram, a cultura – a nossa – que supostamente não possuem, etc.
Como se, pelo simples facto de não terem a imagem que de nós mesmos queremos
ter os condenasse a uma definitiva ilegitimidade política.
Mais uma vez, posso estar
enganado, mas não vejo na generalidade da direita uma tal feroz exigência
inconsciente. O que torna, banalmente, a actual direita mais democrática do que
a esquerda. A oposição à esquerda não sofre de uma tal vontade de identidade.
Como não sofre de uma tal entusiástica vontade a relação que a direita tem com
os seus representantes, um facto que merece ser sublinhado. Uma pessoa pode
respeitar e admirar Passos ou Cavaco – é, confesso, o meu caso, e acho que
temos imensas razões para lhes estarmos gratos – sem os querer, nos mais subtis
prazeres intelectuais, iguais a nós. Basta reconhecer neles uma vontade de
respeitar as paixões comuns que fazem, nos melhores casos, a nossa sociedade
uma sociedade onde valha a pena viver, e competência e determinação na defesa
dessa sociedade. Com várias discordâncias, é claro, pelo caminho.
Por esta e por outras é que o
discurso político da direita é, nos melhores casos, mais livre e mais
respeitador da liberdade do que o da esquerda. Porque, quando pensa os desejos
e as aversões políticas, para voltar a Adam Smith, não o faz a partir de
imoderados e ferozes entusiasmos justiceiros. Entusiasmos esses que, já agora,
nos estão quase fatalmente a levar a um precipício que conhecemos bem demais
alguns anos atrás.
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