Maria João Avillez
Milhões de brasileiros saíram às ruas de todo o país para dizer "basta”.
A sua força ressuscitou o impeachment. Mas a incerteza é total, até sobre se
Lula irá para o Governo para fugir à Justiça.
1. A rua
ressuscitou o impeachment. Parece até impossível que a esta mesma
hora (seis da tarde de domingo em Brasília) a Presidente Dilma não pense o
mesmo. Fechada num sepulcro chamado Palácio da Alvorada, com meia dúzia de
ministros fieis que ela fez regressar dos seus Estados à capital federal ontem
à noite, Dilma com o seu olhar vazio e uma atitude de desnorte, passou um mau
domingo. Desde manhã cedo, milhões de brasileiros saíram às ruas de todo o país
para lhe dizer “basta”. Eram mesmo milhões, numa mancha interclassista e
intergeracional, vestida de verde e amarelo. Havia famílias, jovens, crianças
as costas dos pais, animais, idosos, bandeiras nacionais, bebés, máscaras de
Dilma ou Lula, cartazes com dichotes ou insultos, faixas, selfies. Ouviu-se o
hino nacional, vivas ao juiz Sérgio Moro, aplausos a Policia Federal (isto é,
louvores a operação Lava Jato), e vaias a políticos tucanos do PSDB que
surgiram nas manifestações na cidade de S. Paulo (José Serra, Aécio Neves,
Gerardo Alckmin, governador do Estado). Houve porém muito mais empenho que
tensão e muito maior alegria que crispação. Um passeio de domingo, capturado por
mil câmaras de televisão reportando tudo, de todo o lado e ao minuto.
Isto dito, o número
absolutamente avassalador de gente que “passeou” espoleta de imediato duas
conclusões: o governo vai ter que rever a sua vida ou mesmo desistir dela; e
não se vislumbra, a olho nu, quem de entre a oposição possa “ocupar”
politicamente as incontáveis expectativas deixadas hoje nas ruas do Brasil,
quem possa liderar e enquadrar esse expressivo desejo de mudança. Que o mesmo é
dizer como se mantém elevado o grau de imprevisibilidade sobre um desfecho que
as circunstâncias exuberantemente mostraram hoje dever ser acelerado.
Amanhã, com uma ressaca que se
adivinha pesada em cima de uma noite sem sono, a Presidente Dilma Roussef não
terá mais remédio senão monitorar a sua própria agonia política abrindo a caça
aos deputados da sua base governamental para que resistam a alinhar num
processo deimpeachment que talvez veja mesmo a luz do dia (embora
não tenha sido ainda convocado). Uma tarefa ciclópica e de êxito muito
duvidoso. E se Lula for pontual e se lembrar que há três dias anunciou para
amanhã, segunda-feira, a sua resposta ao extraordinário convite da Presidente
para vir a integrar o Governo (com a pasta que quisesse!), a segunda-feira de
Dilma não se antevê leve.
Vale a pena relembrar as
duríssimas realidades que a cercam: uma economia sem capacidade de reação e que
piora dia a dia, agravada pela própria inoperância do governo que paralisa
decisões em vez de as apressar; as investigações da Lava Jato (que nenhum
cacique da sua entourage conseguiu travar nem subverter) que estão para durar;
o incómodo caso Lula; as manifestações de hoje que marcaram um indisfarçável
“antes e depois” na era Dilma; a Convenção do seu mais forte e por isso
indispensável parceiro governamental, o PMBD (o maior partido do pais),
realizada ontem. Como se não fizessem parte de nada, os “pemedebistas” atacaram
a Presidente sem dó nem fidelidade, tendo o cuidado de deixar aviso prévio de
provável “desembarque” da coligação governamental, decisão aprazada para a
próxima reunião do Diretório do PMDB, daqui a trinta dias. Ou seja o
“desembarque” ficou apenas avisadamente adiado e digo avisadamente porque não é
demais repetir que nenhum líder quererá arriscar a decisão de fazer cair o
governo ao qual também pertence, num cenário político onde não se sabe o que é
maior se a incerteza, se a imprevisibilidade. Fazendo contas, Michel Temer,
líder do PMDB vetou a ida para o governo de qualquer dos seus membros caso a
Presidente Dilma Rousseff se proponha realizar “mexidas” na equipa do Palácio
Planalto…
Entretanto o mesmo PMDB e relutante parceiro governamental do PT
continua (à vista de todos) a seguir uma rota de aproximação à oposição,
iniciada há semanas.
No caso, ao PSDB, com cujas
cúpulas têm conversado. E o dito PSDB (partido cuja referência continua a ser
Fernando Henrique Cardoso e cujo núcleo duro politico e maior base de apoio se
concentra prioritariamente em S. Paulo) participa com gosto em tais diálogos.
Tratam ambos, PMDB e PSDB, do day after. E como será ele? Peço
desculpa de não ser conclusiva: domingo à noite em Brasilia ninguém sabia. É
isso: o clima político, embora mais claro, mantém-se muito incerto.
2. Certo é que o
dia de hoje deixou aí um impeachment ressuscitado. Lembre-se a
propósito que há meses, o Supremo Tribunal Federal procedeu a alterações nas
regras que então vigoravam num processo deimpeachment. Segundo a nova
legislação a Câmara dos Deputados está autorizada a pedir a abertura de tal
processo, cabendo-lhe analisá-lo e votá-lo por uma maioria de dois terços. Mas
o Senado — eis a alteração — terá a última palavra na instauração do impeachment,
através de uma maioria simples na votação. O que significa que a Presidente
Dilma Rousseff só será afastada do Palácio do Planalto se o Senado assim o
entender.
Serão necessários 342 votos
para pedir a sua abertura na câmara. Até aqui o governo contava ter cerca de
duzentos votos do seu lado, que justamente impediriam essa abertura. A partir
de hoje, já não tem. Alguns deputados que conversaram esta tarde com colegas da
Globo News afirmaram estarem a ser “pressionados” pelos seus Estados para
alinharem pela abertura do impeachment. O que não se pode estranhar
dada a massa de gente que de algum modo se comprometeu hoje com uma vontade de
mudança nesses diversos Estados e não só nas capitais: inúmeras cidades do
interior, maiores ou menores, viram desfilar dezenas ou centenas de milhares de
pessoas que irão continuar a reclamar por uma mudança politica. Por outras
palavras: lutarão para que a partir de agora, em sede parlamentar, se continue
o que eles hoje começaram por este imenso país fora. Ordeiramente, civicamente
e alegremente.
3. “No Brasil, é
assim: quando um pobre rouba, vai para a cadeia; quando um rico rouba, vai para
um ministério”. Lula dixit, nos idos de 1988. A fatídica frase não
o incomoda, o seu problema e saber se deve ir para as ruas com o PT em
manifestações programadas para dia 18, ou se para o governo… com Dilma.
As ruas mostraram-lhe hoje que
lhe pode restar pouco espaço amanhã, embora como bem sabemos o ressentimento
seja um óptimo motor de arranque; mas se em vez da rua, optar pelo governo,
transmitirá fraqueza e fará uma confissão de culpa que só o cerco da Lava Jato
(e o que ainda há de vir) poderia explicar.
A entrada de Lula no governo
dar-lhe ia imunidade parlamentar mas deixaria de fora dessa “protecção” a
mulher e um filho, também com culpas nestes cartórios já registadas e
confirmadas pelos juízes. Ou seja, a pasta seria um salvo-conduto mas Lula
precisa mostrar que esta vivo. Já não é o mesmo, envelheceu e perdeu qualidades
mas ainda une o PT. Voltou agora à arena no papel de vítima, tendo ganho até
inédita ajuda quando há dias três jovens do Ministério Público de S. Paulo
(imperdoavelmente impreparados) propuseram, com claudicante base de
sustentabilidade jurídica, a prisão preventiva do ex-Presidente por questões
relativas ao uso indevido de um tríplex no litoral paulista. O gesto (que nada
tem a ver com a operação Lava Jato) caiu mal nos meios políticos, jurídicos e
intelectuais, e a própria oposição hesitou entre o mutismo e uma prudente
distância. A decisão caberá a uma magistrada da quarta vara criminal de S.
Paulo, mas Maria Priscilla, assim se chama, já anunciou que “precisa de tempo”
enquanto denunciava “pressões sobre ela própria”. Não se duvida: ter o poder
de, com uma caneta, originar uma revolução (a prisão de Lula incendiaria o
Brasil) não é de borla. Sim, Lula já não e o mesmo mas ainda une as tropas.
Desgracadamente de resto, o
que ele faz sobretudo é iludi-las: exibe-se como se trouxesse com ele a certeza
da felicidade do povo; em nome do seu sonho de voltar a Presidência do Brasil,
faz inventários enviesados do seu governo e promete tudo como se pudesse
prometer e tivesse o que dar. Talvez esteja porém na hora de lembrar que as
suas ”benesses” circunscreveram-se ao “dentro de casa” – o rádio, a televisão,
a geladeira, o carro – e que Luís Inácio Lula da Silva nada deixou selado de
estruturantemente melhor na vida dessa faixa de milhões de brasileiros
cooptados pela geladeira: nem melhor escola, nem melhor saúde, nem melhores
hospitais, nem melhores estradas ou acessos, nem melhores transportes (um
trabalhador pode demorar mais de três horas a chegar ao local de trabalho, em
ónibus ferrugentos e superlotados circulando ingloriamente por vias
escalavradas.)
Nunca se pode contar Lula, e
os seus governos e a sua liderança e a sua biografia, se não se tiver isto em
consideração quando se atender a assinatura que deixará na história do Brasil.
4. D. Odilio
Sherer, cardeal-arcebispo de S. Paulo, tem uma coluna no Estado de S. Paulo. É
uma tradição antiga: a imprensa brasileira costuma abrir as suas páginas à
Conferência Episcopal. É uma rotina e tem vasta audiência. O Brasil tem uma
Igreja actuante que está presente nas marés cheias e nas vazias e que intervêm
procurando sempre não confundir a cidade dos homens e a cidade de Deus. Dizia
ontem D. Odilio, escrevendo em S. Paulo e depois de denunciar “a ambiguidade
ética em que se vive há muito na vida pública” que chegara o “momento crucial
em que há que rever a cultura que vamos edificando”:
“Não é mais possível seguir
adiante com esquemas corruptos na política e na administração pública”.
Palavras quase banais mas
imprescindíveis no delicadíssimo momento que é hoje o presente do Brasil. E
cujo eco certamente se juntará ao eco não muito diferente que se solta das
confederações, associações, organizações da sociedade civil, famílias, cidadãos
e cidadãs do Brasil, comprometidos com o futuro.
5. Quando este texto
for lido, sabe Deus o que pode ter acontecido ou estar para acontecer. É isso:
Tom Jobim tinha razão: “o Brasil não é para principiantes.”
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