Maria João Avillez
Passos Coelho está isolado de uma “casta”
que não presta mas lhe quer a pele. E que disfarça (mal) ambições difusas e
confusas de “liderança”, que simultaneamente quer mas teme, deseja mas não assume
1. Há anos que
Pedro Passos Coelho está “isolado”. Que me lembre, pelo menos desde 2010. Ou
era o PSD que não estava “unido atrás dele”, ou era Angela Merkel —
asseguravam-me fontes “bem informadas” — que “estava contra ele”, ou era Cavaco
Silva que “sempre se dera mal com Passos Coelho”. Sorte espinhosa, esta.
Em Maio do ano seguinte,
ganhas as eleições legislativas contra o governo do PS pelo mesmo Pedro Passos
Coelho, houve uma brevíssima trégua na sua “solidão” política. Talvez por
decoro face à plateia do país, diariamente convocada para uma ficção que a
realidade também diariamente desmentia mas foi breve o intervalo: Passos sofria
de “isolamento” como quem tem uma doença de pele
Seguiram-se anos assim,
iguais: no governo, no partido, no país da comunicação social, nas televisões,
nas manchetes, ninguém “se revia no primeiro-ministro”. E menos num governo que
obviamente não “podia” durar com a “certeza” do segundo resgate à porta. E nem
aquele fatal “irrevogável”de Julho de 2013, que vinha tão a jeito, conseguiu
que o desfecho coincidisse com o veredicto mediático-socialista da queda antes
do tempo: o país dispensou a ultima tranche do empréstimo da troika e o tão
certo desfecho desaguou em nova vitória legislativa. (O que entre outras coisas
mostra “que essa” parte do país, teria pelo menos merecido alguma atenção por
parte de jornais e jornalistas, sempre preferencialmente entretidos na afanosa
pesca do verbo esclarecido de Pacheco Pereira que “até era do PSD”, ou de
Bagão, “que sempre fora CDS”.)
Além do seu partido (mas era
preciso ser capaz de ter o PSD manso de veleidades e Passos foi), o “isolado”
teve consigo uma coligação unida e sobretudo — e antes do mais — uma parte
substancial do país, sem a qual ele nada faria. Nós vimos, foi ontem. Estamos
lembrados.
2. Peço desculpa
pela arenga acima exposta. Julgava-me liberta dela para todo o sempre mas tive
de voltar a soletrá-la para poder aterrar no “hoje” Começo por um “hoje” que
decorreu em Espinho e onde algumas boas intervenções correram o risco de serem
devoradas pela ficção. Era até por vezes como se alguém pusesse as luvas nos
pés e calçasse os sapatos nas mãos. Ou exibisse uma foto de pernas para o ar,
com a imagem ao contrário.
Pela enésima vez queriam que
nos fixássemos num Passos Coelho que nunca existiu. E que apenas
fantasmaticamente se corporizava nas perguntas ou opiniões de barões e
oligarcas, pivôs e comentadores, segundo um guião pré-definido e igualmente
ficcional. Uma espécie de Passos Coelho pronto a servi e enfeitado com aqueles
defeitos nossos conhecidos que com alta inconsistência e muito tédio são
ciclicamente ressuscitados: é “frio”, confundindo-se comodamente “frieza” com
resiliência e “rigidez” com a sua recusa (que se agradece) em exibir estados de
alma; sem “jeito para comunicar,” mas desde quando é que Passos Coelho ama os
palcos acima de todas as coisas? “Teimoso”… talvez porque recusa guiões alheios?
Nada de muito novo mas como
quase exclusiva base da intervenção mediática foi pobrezinho além de
inverosímil. E no baronato, a cultura da intriga anónima esteve florescente:
dos “altos dirigentes” que exigiam o anonimato às fontes sem rosto, a colheita
foi boa e o despeito, exuberante. Provavelmente é o que lá há mais. Mas como
eu, muita gente se teria certamente inquietado se tivesse tropeçado numa súbita
mudança de “perfil” ou se tivesse visto Passos Coelho ceder, mesmo que por mera
exaustão, às reclamações de um cerco de barões despeitados.
3. O “hoje” do PSD
não é sofrer do mal de liderança nem de bússola parada. O melhor que
actualmente ainda tem é justamente a sua liderança. E nesse sentido não é
Passos Coelho que está “isolado”, é o seu partido que se entala entre a temível
oligarquia que lá sobrevive — hipócrita, ambigua, débil, dúbio — e um aparelho
que, apesar de bem melhor que a oligarquia, devia trocar a sua manifesta fome
de lugares pelo apetite de servir a política.
Nesse sentido, sim, Passos
Coelho está isolado de uma “casta” que não presta mas lhe quer a pele. E que
disfarça (mal) ambições difusas e confusas de “liderança”, que simultaneamente
quer mas teme, deseja mas não assume. Capaz de alimentar qualquer pequena ou
média intriga sem substância, possui o misterioso tique de se considerar sempre
“melhor” do que qualquer líder (o PSD sempre apeou lideres com um sangue frio
que não corre em mais partido algum). Sem surpresa trocaram a comparência no
Congresso de Espinho pelo (suposto) glamour de treinar as massas a partir da
bancada da televisão enquanto outros se confortavam em desabafar no primeiro
jornal que os acolhesse. Conhecemo-los. Fazem medo mas não se exclui que tenham
futuro, a política está enevoada. Mas que Passos destoa disto, destoa.
(Breve entre parêntesis ainda
a propósito de Espinho: Santana Lopes, parece, pelo contrário, pouco enevoado,
talvez tenha amadurecido de vez. Mesmo que interessadamente, deu-se ao trabalho
de rumar a norte, onde, com um aparato de que tem o segredo, disse algumas
verdades. Além de se ter ocupado da marca — impressa no país — e da memória —
inscrita no PSD –, de Cavaco e Passos, tratados até aí como dois figurantes,
alheios à “casa”. Deu aos Césares o que era de cada César. E ja que voltei a
Espinho, foi politicamente interessante reencontrar Carlos Moedas: apreciar ao
vivo o efeito de uma cultura politica “outra”, e apreciar o “modus operandi”
político e civilizacional de alguém que vive e respira num ar menos rarefeito.
Não ocorre todos os dias.
4. Embora sempre
ameaçado pelo expirar do seu próprio prazo de validade, é da voz de Passos
Coelho que se têm ouvido as propostas mais consistentes de reformar coisas tão
pouco despiciendas quanto a Segurança Social e a própria… política, para só
escolher estas. É um bom sinal para quem podia estar entrincheirado em si mesmo
e um desafio político útil, recuperar da sua governação o que deve ser
projectado, relembrado, rentabilizado no futuro, fazendo disso uma mais-valia e
uma assinatura.
Tenha ou não êxito imediato no
propósito de arregimentar vontades para reformar o país, contrasta pelo menos
com o vaguíssimo e preguiçoso mapa de “reformas” do governo do “tempo novo”.
Onde ainda o pior talvez seja o achar-se – como aparentemente os seus autores
acham – que alguém normalmente constituído, pode levar aquilo a sério. Deve ser
uma experiência invulgar poder viver num universo tão irreal. Um mundo
privativo das três esquerdas, onde se tenta convencer os portugueses de que
vivem melhor (com o dinheiro de quem?), se evoca a torto e a direito o (artificial)
“desanuviamento” do ar e se levanta a voz na “Europa” (em qual?)
Dizer isto cai mal, eu sei.
Logo numa altura em que o país deixou subitamente de ter problemas e a vida se
anuncia tão bela, E tão distendida, tão leve.
5. Qualquer pessoa
séria sabe que não é bem assim, as noticias não são boas, há uma deterioração
que os números, mesmo que se manipulem, ainda que se deturpem, nunca poderão
esconder: mais perto que longe, a realidade se encarregará de fazer a sua
“fracassante” entrada em cena. E não é preciso evocar o papão europeu, os
“mercados”, ou seja o que for. Basta só atender à realidade intramuros, quando
ela começar a dar de si.
Apenas dois pequenos exemplos:
1) As “cativações” começam a dar que falar, as reações vieram com as andorinhas. A última foi a da Universidade. O Governo obviamente não lhe chama “cortes” — o PS podia lá contrariar os seus periclitantes parceiros? — mas são um corte “disfarçado”: o dinheiro está “lá” mas não se lhe pode tocar. De caminho joga-se uma tripla — finge-se que se cumpre o programa do governo; finge-se que se aplica o acordado com os parceiros; finge-se que se é fiel à palavra dada, neste caso, aos reitores. E entretanto…
vai-se “cativando”.
2) O célebre plano B — que o governo esconde, o país desconfia que existe e o Presidente do Banco Central Europeu confirmou — é porventura a melhor radiografia da deterioração em curso.
6. Sem novidade, a
tendência, nos palcos do poder e nos écrans, tem sido a de persistentemente
anular – com carácter de urgência e irreversibilidade — a governação anterior:
quatro anos de erros e de mansidão em Bruxelas. Mas a coisa subitamente subiu
de tom. Com nuvens mais pesadas que o esperado a anunciarem-se sobre a actual
governação (ameaçando a prometida glória de um futuro feliz e a sobrevivência
da própria governação) inventou-se um salvífico bode expiatório: o passado
“culpado”. Não foi aliás difícil, há sempre fiéis mensageiros. Já começaram a
doutrinar-nos que os erros cometidos pelo governo da coligação PSD/CDS foram
tão, tão, tão terríveis, que justificam tudo o que de mau pode (afinal?) vir a
passar-se entre nós: dificuldades, dívidas, défice, desemprego. A cantilena
está em marcha, o refrão é: “a culpa é toda deles”. Estamos avisados.
Título e Texto: Maria João Avillez, Observador,
8-4-2016
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