quinta-feira, 28 de abril de 2016

Uma escuta telefónica

Vitor Cunha


– Estou? É da SIC?

– Bom dia, SIC, redacção noticiosa. Está a falar com Joaquim. Em que posso ajudar?

– O meu filho Zezinho vai emigrar.

– Está bem. Em que posso ajudar?

– Vai emigrar, percebe? Isto não se aguenta! É uma desgraça, uma ignomínia, o fim da democracia, a queda do regime, cães e gatos mutilados na auto-estrada a caminho do purgatório para nos condenarem a todos à podridão da decomposição do ethos e pathos que o colapso do Estado Social acarreta no rumo ao fogo do inferno…

– Emigrar já não é notícia…

– Não é notícia? O Zezinho andou 15 anos na escola para ser doutor, tem uma pós-graduação em entropia do ser na dialética ocupante do espaço corpo-língua em zulus com menos de 35 anos, não há emprego, não há investimento, nem há cluster do mar e da filofarmacêutica, a reposição das pensões foi 2€ e já nem temos que comer que seja biológico…

– Minha senhora, as coisas agora são diferentes, a austeridade acabou, o Bem venceu, de que se queixa?

– O quê? Os estivadores estão em greve, os taxistas em marcha lenta, as crianças morrem nos braços das mães, que as comem para saciar o básico instinto de sobrevivência, nem os sírios querem vir para este cu de Judas, este buraco onde a indignidade salarial impera em conivência dos políticos com o grande capital da banca e dos offshores opressores da Holanda e além-mar…

– Pois, isso agora não vende…

– …a ditadura dos mercados, a escravidão do euro e da dívida segundo os ditames do directório europeu e das políticas neoliberais que causam sismos e tsunamis, matando inocentes como vítimas de um sistema corrupto em que os ricos ficam mais ricos e os pobres morrem, como bem diz o Papa Franc…

– Pois, devia ter ligado no ano passado. Teríamos colocado 6 equipas no terreno, 2 helicópteros e 4 drones a acompanharem a emigração do seu filho em directo, com comentário do Adão e Silva e um especial com Boaventura Sousa Santos e uma doutoranda qualquer que seja filha de um ex-ministro de Sócrates. Agora já não cobrimos emigrações.

– Pronto, obrigado, fica para a próxima. Desculpe.

– Não faz mal. Posso ajudar em mais alguma coisa?

– Não, obrigado, era só. Boa tarde.

– Boa tarde.
Título e Texto: Vitor Cunha, Blasfémias, 28-4-2016

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