José Manuel Fernandes
Temos um Governo que diz uma coisa em
Bruxelas e outra aos portugueses, que promete à DBRS o que ilude aos parceiros
da geringonça. Mas que já tem "narrativa" para tudo: a culpa é sempre
dos outros.
Há imagens que são mais
reveladoras do que mil palavras. E as imagens do embaraço do ministro das Finanças,
na passada quinta-feira, quando não soube como esconder que, afinal, havia
mesmo um anexo “secreto” do Plano de Estabilidade, dizem tudo. E esse tudo é
que estamos a viver mais uma farsa, mais uma comédia de enganos em que se diz
uma coisa em Bruxelas (ou à DBRS, a quem o ministro das Finanças sugeriu que
estaria “pronto para subir os impostos indiretos — não os diretos — se for
necessário”) e outra aos portugueses.
Horas antes tínhamos
assistido, no Parlamento, à cena caricata de um primeiro-ministro a acenar com
um papel que antes não tinha sido distribuído aos deputados, e ainda menos aos
jornalistas, e onde estavam discriminados os cortes que ninguém queria assumir.
Isto um dia depois de o mesmo Parlamento ter debatido – com o primeiro-ministro
significativamente ausente – um Plano de Estabilidade que, afinal, estava
truncado.
Mais: como Pedro Romano mostrou, o que
caracteriza este plano é, nos números, seguir quase à letra a cartilha europeia
e, nas medidas concretas, ser completamente omisso ou, então, vender gato por
lebre. Ou melhor, prometer austeridade sem a concretizar: lendo o PE percebe-se
que os cortes em gastos com salários da administração pública e em prestações
sociais atingem mais de 3 mil milhões de euros, mas do lado do Plano Nacional
de Reformas, só se promete mais despesa. Até os parceiros da geringonça
desconfiam, como especificou o
Jerónimo de Sousa ao referir que quer explicações sobre a redução de 150 milhões
de euros em apoios sociais e o corte de 135 milhões em investimento público já
em 2017 e que constam do tal anexo “secreto”.
Aquilo a que estamos a
assistir não é apenas uma mistificação ocasional, antes faz parte de um
processo em que as várias partes da geringonça tratam de construir a sua
narrativa, uma “narrativa” capaz de justificar – ou ir justificando, pois as
coisas estão a complicar-se – o seu fracasso. Onde alguns já vêem vitórias por
KO não está mais do que o cimento da aflição: todas as partes da geringonça
sabem que não podem roer a corda neste momento, todas também sabem que no dia
que isso acontecer necessitam de um bode expiatório, que até já escolheram: a
União Europeia.
A “narrativa” do PS e de
António Costa é a da “viragem de página da austeridade”, algo que a
generalidade dos portugueses já percebeu que não aconteceu nem vai acontecer.
Pelo que o problema de Costa é ainda mais grave, pois aquilo que em breve se
tornará evidente é que esta maioria vai trazer mais austeridade, tal como já é
evidente que esta maioria já nos trouxe menos crescimento do que o registado no
final do anterior mandato, ainda com a anterior maioria (foi especialmente
patética a alegação de António Costa de que o crescimento económico de 2015 foi
“fictício”, um crescimento de 1,5% que deverá ser superior ao que a geringonça
nos entregará em 2016, algo que o primeiro-ministro já percebeu que vai
acontecer). Ao PS só interessa manter-se à tona de água e tentar convencer os
portugueses que tudo o que aí vier de mau é culpa de Bruxelas, a tal Bruxelas
que eles iam “vergar” à sua estratégia e à sua clarividência. E que o que vier
de pior é resultado da “crise internacional”. É um filme que já vimos, uma
“narrativa” velha, a de que a culpa é sempre dos outros.
A “narrativa” do Bloco de
Esquerda é mais simples: estará neste barco enquanto se estiver, como diz
Catarina Martins, a “devolver rendimentos aos portugueses”. Já sabemos o que
isso nos custou e o que isso significou no orçamento deste ano: mais de dois
terços do esforço de “devolução de rendimentos” foi para os funcionários
públicos e os pensionistas de rendimentos mais elevados, uma pequena minoria
mas que tem peso na base eleitoral do Bloco. Já a fatura está a ser paga por
todos os outros contribuintes, nas bombas de gasolina e no preço de muitos bens
essenciais. Até o bónus que o Bloco diz ter dado aos portugueses mais pobres, o
alargamento da tarifa social da EDP, soubemos no outro dia que está a ser paga
pela EDP, o que significa que, mais tarde ou mais cedo, será paga pelos outros
consumidores de electricidade.
Já a “narrativa” do PCP é mais
simples: está contra a Europa, contra tudo o que de lá vem, pelo que trata de
se esgueirar dos votos mais comprometedores (não por acaso toda a esquerda se
recusou a votar favoravelmente o Plano de Estabilidade, só se unido para votar
contra uma proposta vinda do CDS). No entretanto vai cobrando caro esse seu
apoio, especialmente caro se pensarmos que o Ministério da Educação se transformou numa
agência dos sindicatos, e o ministro numa espécie de clone de Mário Nogueira.
Desde o tempo de Mário Sottomayor Cardia, no I Governo constitucional, que isto
não acontecia. A obra de destruição em curso vai custar-nos muito caro, mas
isso não parece incomodar António Costa.
Aliás nada parece incomodar
António Costa, cuja agenda se caracteriza por aparições diárias em registo de
campanha eleitoral, um estilo que conhecíamos em José Sócrates e que Costa
imita, mas com menos competência e, também, com menos estudo dos temas sobre os
quais tem de falar.
Entretanto começa a acontecer
o que tinha de acontecer: a realidade deixou de ser apenas Bruxelas para ser
também a de uma economia portuguesa que, desde as eleições e da percepção de
que teríamos um Governo dependente da esquerda radical, se começou a retrair e
a arrefecer. O que se está a passar no mercado de trabalho é especialmente
elucidativo: entre Novembro e Março desapareceram 20 mil postos de trabalho.
Há um mês, num
texto aqui no Observador, já tinha notado a evolução desfavorável dos dados
do emprego. Os números saídos esta semana acentuam o pessimismo. Números que
são tanto ou mais significativos quanto em Março o emprego costuma recuperar,
mas agora isso não aconteceu: o número de pessoas empregadas diminui (em
valores corrigidos da sazonalidade) relativamente a Fevereiro. Quando
comparamos com Março de 2015, vemos que há mais 12 mil postos de trabalho, o
que corresponde a uma enorme desaceleração da criação de emprego: comparando
2015 (o ano do “crescimento fictício”) com 2014, verificamos que, Março sobre
Março, o ganho em postos de trabalho era de 54 mil; e que em Novembro, últimos
mês da anterior maioria, o ganho sobre o ano anterior era de 60 mil empregos. O
que mostra que se alguma coisa aconteceu à economia portuguesa que possa ter
prejudicado o emprego, aconteceu depois deste Governo estar em funções, não
antes.
Na verdade o investimento
praticamente parou no último trimestre de 2015, quando a geringonça começou a
tomar forma, e não recuperou no primeiro trimestre deste ano. O investimento
público também está a cair para níveis historicamente baixos, contrariando o
discurso (e as promessas) de Costa, de Catarina e de Jerónimo. E a aposta no
consumo, com o “mais dinheiro nos bolsos das famílias” que verdadeiramente não
se materializou, também não parece ter sido fórmula de sucesso: o indicador de
confiança do consumidores estagnou em Março e não teve evolução positiva que se
visse desde a tomada de posse do Governo. O que não surpreende por, escreve o
INE no mesmo relatório relativo a Março, “as expectativas relativas à evolução
da situação financeira do agregado familiar agravaram-se ligeiramente em Março,
suspendendo a trajetória ascendente observada desde o início de 2013”.
É um resultado que nos
posiciona muito mal quando comparamos com o resto da Europa, como se vê neste gráfico do Financial Times:
Ups!, não era bem isto que
estava prevista, não era isto que Centeno tinha planeado, não era com isto que
todos os Galambas deste planeta nos tinham vindo a encher os ouvidos. Vamos ver
os resultados do crescimento no primeiro trimestre, que serão conhecidos nos
próximos dias, mas as previsões são sombrias: as previsões andam pouca acima de
1%, o que nos coloca na cauda da Europa como mostra este gráfico do mesmo
Financial Times:
Isto depois de Portugal ter
registado, no agregado de 2014 e 2015 – sob a tenebrosa liderança do anterior
Governo – um crescimento acima da média da eurozona:
Mas há mais, e continuam a ser
más notícias para Portugal – más notícias associadas a este novo ciclo
político. É que, mesmo tendo em conta o que se foi dizendo às agências rating para evitar uma situação ainda pior, a
verdade é que os mercados – os “malditos” mercados – já dão sinais claros de
desconfiança, o que tem pesado sobre os juros que pagamos de cada vez que
refinanciamos a dívida nos mercados. A evolução comparada da percepção de risco
de Portugal nos três primeiros meses deste ano não podia ser mais eloquente de como a geringonça nos
está a sair cara:
Devo dizer que nada nesta
evolução me surpreende. A obsessão de desfazer as reformas que vinham detrás
não podia ter bom resultado no clima económico, o dinheiro não regressa ao
bolso dos portugueses quando o que se “dá” por um lado se tira pelo outros e
nenhuma confiança é possível num país que passou pelo que passou e desconfia de
milagres – mesmo sendo um país excessivamente dependente do Estado, Portugal
não é um país de tolos nem de desmemoriados, está bem presente na memória
colectiva onde nos levaram as promessas de fartura e a orgia do endividamento.
Resta pois à maioria ir, como
se costuma dizer, “empurrando os problemas com a barriga” – e barriga é, ao
menos, algo que não falta ao primeiro-ministro.
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