Alexandre Homem Cristo
A queda iminente e já inevitável do
regime venezuelano deixará órfãos esquerda e direita. Uma por obstinação
ideológica (PCP-BE), outra por ganância (PSD-PS-CDS). A cegueira não tem
ideologia.
Um amigo, há tempos, mostrou-me um mapa-mundo no qual, segundo me avisou
previamente, tinha assinalado a verde os países em que coexistiu um governo
composto por um partido comunista e um regime democrático. Era, naturalmente,
uma piada – o mapa estava todo em branco pois nunca aconteceu a consolidação
democrática pela mão de partidos comunistas. Mas o lado trágico da piada é que
o seu pressuposto inicial não é contestado unanimemente. Após décadas de
casos-práticos dos mais terríveis atropelos à liberdade por regimes de
ideologia comunista, sobrevivem ainda largas esperanças de que as manchas
verdes aparecerão no mapa. Não é só nostalgia de quem passou pelo maoismo ou se
deslumbrou com a URSS no pós-II Guerra Mundial. É um fenómeno tristemente
contemporâneo – basta olhar para a Venezuela.
Anos após o apoio da Revolução Bolivariana de Chávez na produção de
petróleo, que sustentou o regime (leia-se, o enriquecimento das suas elites, as
nacionalizações, o controlo estatal de toda a vida pública), a Venezuela
acelerou rumo ao abismo que se avistava no horizonte. O “socialismo
internacionalista” de Chávez, cuja propaganda assegurava prosperidade e
harmonia social, promoveu miséria e conflito. Escasseiam os produtos básicos de
alimentação e higiene, as filas nas ruas para abastecimento familiar
agigantam-se, a electricidade teve de ser racionada, a inflação aproxima-se dos
200% e a criminalidade violenta disparou (pior, só nas Honduras). Note-se que o
tormento venezuelano não é meramente económico e social, mas sobretudo
político. Depois de Chávez implementar o seu simulacro de democracia, Maduro
respondeu à contestação social com o reforço da repressão política e militar
sobre quem o contraria. Esvaziou os poderes do parlamento, que já não
controlava, prendeu adversários (e alguns apareceram misteriosamente
assassinados), decretou o estado de excepção e centrou em si plenos poderes. Num país à beira
de uma guerra civil, já não sobram instituições políticas para além do poder
soberano de Maduro e das forças armadas – uma ditadura, portanto.
O presente da Venezuela é uma consequência directa, esperada e prevista
pelo seu passado. E, no entanto, isso nunca dispersou os apoios ao regime
venezuelano. No exótico mundo das artes, os milionários norte-americanos Sean
Penn, Michael Moore e Oliver Stone juntaram-se a Chávez na sua luta ao
capitalismo. Na política internacional, Pablo Iglesias e o Podemos espanhol
foram financiados, tipo partido-satélite do regime, por Chávez; Jeremy Corbyn
(o líder vermelho do Labour britânico) louvou as grandes conquistas de Chávez;
e o grego Alexis Tsipras (do Syriza) apontou desde há muito o regime
venezuelano como exemplo a seguir.
E em Portugal? O PCP ainda há dias reafirmava a sua solidariedade para “com o governo
constitucional do Presidente Nicólas Maduro” contra “a agressão orquestrada
pelo imperialismo norte-americano”, enquanto um seu eurodeputado acusava a imprensa internacional, enquanto força
reaccionária, de “recuperar a mentira e os piores mecanismos para perturbar a
América Latina”. No Bloco de Esquerda, louvaram-se os sucessos de Chávez “contra o imperialismo e contra o FMI”, na convicção de
que, “enquanto na Europa a democracia está a falhar, na Venezuela a democracia
participativa tornou-se num sinal de identidade”. Está na cara.
Mas não só. Falar de Portugal e da Venezuela obriga a não esquecer a
tolerância institucional que o regime de Chávez e Maduro conheceu por cá. Sim,
por um lado, é justo apontar o dedo e ostracizar a esquerda (nacional e
internacional) que, por obstinação ideológica, tapa os olhos às mais
intoleráveis agressões a direitos e liberdades dos povos sob “governos
revolucionários”. Mas, por outro, é igualmente necessário lembrar que Portugal,
pela mão de PS-PSD-CDS e sob o argumento dos interesses económicos não terem
ideologia, deu privilégio à negociação com tais regimes – Angola, China,
Venezuela – onde era mais fácil introduzir empresas portuguesas. O problema
dessa opção estratégica é que a instabilidade política e económica nesses
países desaconselha a celebração de acordos, face ao risco de incumprimento.
Como agora se vê: se não tem dinheiro para papel higiénico, não é de esperar
que a Venezuela cumpra os contratos com empresas portuguesas para adquirir
computadores ou construir estradas, no valor de 1,6 mil milhões de euros, que Paulo Portas negociou em 2014. Pois é, se calhar não foi
boa ideia apostar na Venezuela.
É assim que a queda iminente e já inevitável da Venezuela deixará órfãos
esquerda e direita. Uma por obstinação ideológica (PCP-BE), outra por ganância
(PSD-PS-CDS). A cegueira não tem ideologia.
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