quarta-feira, 11 de maio de 2016

Serviço Nacional de Saúde: Os logros

Fernando Leal da Costa

O Plano Nacional de Reformas, no que à Saúde diz respeito, é um logro. Não contém reformas, apenas acções de continuidade estrutural, não tem nenhum tipo de justificação para os números apresentados.

O denominado Plano Nacional de Reformas (PNR), no que à Saúde diz respeito, é um logro. Não contém reformas, apenas tem acções de continuidade estrutural, não tem nenhum tipo de justificação para os números apresentados, não tem calendário para as medidas elencadas, nem explica como serão alcançadas. Ninguém negará que precisamos de mais profissionais no SNS, de mais lugares de cuidados continuados, de melhoria de alguns equipamentos, de substituição de outros, de mais algumas instalações, de encerrar ou deslocalizar serviços, mas isso não é reformar.

A maioria das medidas nem será cumprida. Não haverá tempo. Não existe, da parte da maioria que sustenta o actual Governo de “coligação”, outra ambição que não seja sobreviver até às eleições. Já se percebeu que vão provocá-las, quando o tempo lhes parecer favorável. Em suma, o PNR não tem mais do que intendência e medidas gerais de conservação. Nada de mal, caso não tivesse sido propagandeado como reformista e abrangente.

Há um pacto formal, um primeiro consenso, que faz com que o SNS tenha sempre funcionado e, sublinhe-se, melhorado em tempos recentes. O consenso está no artigo 64º da Constituição que não tem de ser mudado. Está lá tudo. Em primeiro lugar, o direito à proteção da saúde, por via de uma resposta coerente, sequencial e inclusiva, de serviços que sejam universais, gerais e, desejavelmente, gratuitos no ponto de contacto e, em segundo lugar, o dever de cidadania de tudo fazermos, individual e coletivamente, para garantir a defesa do direito de proteção da saúde. Um círculo virtuoso.

Assentes nestes pontos, deveríamos construir uma solução que resolva a questão fundamental, reduzir a carga de doença e permitir que a longevidade da população se traduza em mais anos vividos com qualidade e não apenas em anos livres de doença ou incapacidade. Neste sentido, temos de ir muito mais longe do que onde as tímidas propostas do Plano Nacional de Reformas nos pretendem levar. Temos de acordar em que é preciso garantir sustentabilidade financeira a longo prazo, reformar a prestação de serviços – mudando a forma como é feita, por quem é realizada, onde é assegurada e como é paga – garantir a equidade e combater as desigualdades, sem perder o principal enfoque na promoção da saúde e na prevenção das doenças e das suas consequências.

Teremos de resolver questões que são mais do que semântica, como sejam não confundir liberdade de circulação com liberdade de escolha, sendo que nem a primeira, embora o Governo nos queira impingir o contrário, ainda está resolvida. Outro logro, em que nos querem fazer acreditar, o de que agora há uma maior liberdade de escolha para a primeira consulta hospitalar. Em boa verdade, nada de substancial mudou e não teria sido preciso fazer um despacho para supostamente autorizar o que já não era proibido. Nunca nada, para lá da capacidade de resposta, impediu um cidadão de procurar assistência num qualquer hospital do SNS, em especial dos mais diferenciados. O IPO de Lisboa é um bom exemplo disso mesmo. A forma como esta “nova” medida foi embrulhada não expõe os problemas por resolver, tais como o modelo de financiamento alternativo que vai ter de ser implementado nos contratos programa dos Hospitais e Unidades Locais de Saúde, mascara a realidade de que os hospitais centrais já têm excesso de procura, não explica como se adaptarão os contratos das PPP, não se percebe quem assume os custos dos transportes, nem disfarça que a oferta pública está regionalizada administrativamente. Mais gritante é a forma como o Ministério da Saúde ignora a implementação de redes e canais de referenciação que, obviamente, não podem ser geridos pelo doente e o seu médico de família. Tanto para mudar de que nem se fala.

As questões de fundo como, por exemplo, o modelo de financiamento do SNS, a verdadeira liberdade de escolha para o utilizador, englobando todo o sistema e a oferta total disponível em cada região de saúde, ou a revisão dos modelos remuneratórios, são evitadas pela esquerda. A ação deste Governo é conservadora e “reversora”, se o neologismo poder ser aceite. Consenso eficaz, seria elencar medidas que ultrapassassem o termo de uma legislatura ou a vigência de um Governo, todas elas baseadas na melhor evidência científica, afrontando o status quo, educando, conquistando os “desconfiados”, incluindo os “resistentes” à mudança. Não seria um trabalho fácil, teria de haver muita humildade, capacidade de adaptação e disponibilidade para esperar por resultados que não seriam imediatos. Não seria sempre barato, mas também não seria possível sem a adoção das melhores tecnologias, com efeitos comprovados, adquiridas a preços comportáveis. Obrigaria a escolhas que não se compadeceriam com interesses meramente locais, mas sem deixar de respeitar as especificidades de alguns grupos de doentes, populações específicas e determinadas localizações geográficas.

Felizmente, há um capital humano, organizacional e estrutural que serve de base para o que tem de ser feito. Tratar-se-á, como sempre, de evoluir sem tudo destruir. Acima de tudo é a altura de aceitar o primado da saúde em todas as políticas e incluir a avaliação de impactos na saúde, nomeadamente, no que disser respeito a grandes obras públicas, transportes, urbanismo, segurança pública, política alimentar, hábitos de consumo, educação, emprego e fiscalidade. Só a consideração da saúde no desenho das políticas públicas poderá produzir mudanças que tenham efeitos de longo prazo na qualidade de vida das pessoas.

O PS tem um notável conjunto de profissionais capazes de “pensar saúde”. Mas não possui a exclusividade das boas ideias, nem é dono do único modelo de financiamento e organização do sistema de saúde, SNS incluído. Os socialistas, com outra liderança e conseguindo ultrapassar as amarras do radicalismo a que agora se prenderam, poderiam ser um parceiro útil e consequente. Qualquer acordo que adense as soluções a que a Constituição nos obriga tem de ter, num sistema parlamentar como aquele que felizmente temos, uma base de entendimento entre os partidos políticos. O parlamento representa a população que o elegeu. Por isso, o PSD, que foi o partido vencedor das últimas eleições legislativas, deve assumir o comando de um projecto de mudança. O Grupo Parlamentar do PSD deu, com a apresentação de uma Resolução sobre o SNS a que a comunicação social não quis dar o relevo devido, um passo significativo na definição do que devem ser as prioridades para a política de saúde no futuro mais próximo. Essa Resolução é um excelente documento de futuro consenso, um magnífico documento para a reforma da Saúde Pública, e é a base para um conjunto de iniciativas de carácter plurianual e com duração para lá de uma legislatura.

Chega de logros. O País segue com calma aparente porque a esquerda protege o seu Governo. Tem havido casos graves de infecção hospitalar, cirurgias não realizadas por falta de material, adiamentos e desvios de doentes por falta de anestesistas, demissões de chefias, atrasos no acesso a medicamentos oncológicos, mortes por chegada supostamente tardia do INEM. Em tempos recentes, estas notícias, que timidamente ainda vão chegando aos jornais, teriam sido amplificadas para lá do eco. Os casos pontuais são, agora, pontuais. Há seis meses, eram sinais do “desmantelamento”. Só que agora, se nada for feito, face às perspectivas económicas que parecem ser as mais reais, seguramente não haverá desmantelamento, mas tudo poderá piorar. Enfim, quem já paga impostos irá pagar mais por menos. Quem nem taxas moderadoras paga ficará com a consolação de já nada pagar por aquilo que de nada lhes poderá valer. Triste sina, a dos logrados. 
Título e Texto: Fernando Leal da Costa, Observador, 11-5-2016

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