Maria João Avillez
De onde virá este “estado de
condescendência” num país de língua afiada, desconfiança militante, culto da
maledicência? E as elites, que dizer da sua amabilidade com as misérias do
“tempo novo”?
1. Deve haver poucas coisas tão inoxidáveis quanto observar os
comportamentos das pessoas lendo a história escrita diariamente pela natureza
humana. Nunca ou quase nunca se repararem bem, a natureza humana nos esmorece
ou amolece quando nos confronta com o que ela própria é capaz de “produzir”, do
bom ao mau, do prosaico ao prodigioso. Já se sabe? Não, justamente nunca se
sabe o suficiente. Eu por exemplo não sabia que a minha capacidade de pasmo
pudesse ser assim tão posta à prova. E não, nem sequer me foi preciso uma
janela indiscreta para observar — e pasmar. Bastou-me simplesmente pousar o
olhar sobre o grande fresco comportamental do “tempo novo” e depois deixá-lo
pousado nesse mural que era suposto transmitir-nos viço e força (e quem sabe,
até virtude) mas não. Transmite antes uma admirável leveza: como tudo mudou tão
subitamente da manhã para a tarde com amável bonomia; como actuações, decisões,
medidas governamentais, algumas de puro assombro, se somam e multiplicam agora
sob uma espécie de mudo comprazimento; como o punhal afiado de ontem se
travestiu na condescendência gelatinosa de hoje (mas os encarregados do “tempo
novo” não se importam, é dela que se alimentam, tenha a consistência que
tiver.)
Há uma quantidade muitíssimo
considerável de gente que condescendentemente se dispôs a acreditar no país das
maravilhas, acreditando até ser parte das maravilhas e vir a beneficiar delas;
há mel que subitamente passou a escorrer das páginas e microfones de quase
todos os jornais e jornalistas ou das palavras escolhidas de inúmeros
comentadores e editorialistas que nos convencem do contrário do que vimos ou
sabemos; há um mar de gente que parece acordar e adormecer protegida pela
camada protectora da tal condescendência (ou deveria dizer indiferença?) que
tudo acolhe e tudo engole. Sem estranheza que se note, ou estados de alma que
se registem.
Um desafio e peras para uma
observadora, e ando nisto há meses.
2. Desafio e mistério: de onde virá – e daí o interesse do
exercício – este “estado” num país de falsos brandos costumes, língua afiada,
desconfiança militante, culto da maledicência? Com que ingredientes se
fabricará esta qualidade de condescendência que quase se transformou numa forma
de vida, ou até como justificar a amenidade do clima que envolve a CIP e outras
cipes? E as elites e os que pensam, e os que decidem, que dizer da sua
(aparente) amabilidade com as misérias do “tempo novo”?
Tornar-se-ia entediante
enumerar exemplos e já aqui falei de alguns há dias. Basta apenas evocar um
quotidiano ficccional feito de contas erradas vendidas como “controladas”; ameaças
reais de desastre económico logo redimidas pelo fantasioso “novo diálogo com a
Europa” do qual o país sairá supostamente vencedor mas só supostamente; a
imperdoável venda da ilusão de que o “consumo” faria disparar o “crescimento”
(temo que os números que aí vêm, alusivos à receita, estilhacem de vez a ilusão);
a decisão (oh quão datada) da introdução das “35 horas” já em desuso em toda a
parte após as fissuras abertas nos tecidos económicos onde vigoraram com alta
infelicidade; uma “Educação” a desfazer-se, alunos aflitos, pais desnorteados e
apenas sindicalistas felizes e não me refiro agora de todo ao caso dos
contratos de associação, mas àquilo que já não tem remédio: as alterações de
fundo e substância ocorridas com o ano lectivo em curso, revogações,
substituições, alterações, num galope descoordenado de mudanças contra o que
estava, porque o que estava perdeu o direito de cidade.
Há parentescos familiares no
governo para dar e vender, há amigos íntimos com responsabilidades de
negociação reservadas apenas aos bastidores, há comportamento de “donos” em vez
de atitudes de servidores públicos mas quem se incomoda por aí além com estas,
como dizer? novidades? Os dias da ira deram lugar à terra prometida onde já não
cabem “generalizados” protestos, ecrãs televisivos entupidos de indignação,
“repúdio” de leis e medidas. É vida. A do tempo novo. Mas lá que espanta esta
disponibilidade silenciosa para concordar, não fazer ondas, deixar-se ir em
enganadores cantos de sereia, espanta sim. Salvo alguns reparos e modestas
críticas, a palavra de ordem é condescendência, respeitemo-la. (Aliás se ela
não se tivesse transformado numa prática, o mórbido e lesivo acordo com os
estivadores teria alguma vez sido assinado? Sabemos que não teria.)
O chefe do Governo acena com
vacas que voam e oferece uma delas a uma senhora? Que ideia tão engraçada,
original, inesperada, e nem quero pensar em Durão Barroso, Cavaco, Santana,
Passos fazendo o mesmo com tão sedutora segurança quanto à graciosidade do
gesto e à oportunidade da ideia.
O Chefe de Estado atribui
(como nos iogurtes) prazo de consumo ao governo, marca horário para crise e…
quê? Um laivo de estranheza, quando muito, face à manifesta infelicidade
política do gesto mas, sejamos condescendentes, estas coisas acontecem, “foi o
comentador que pregou uma partida ao Presidente” (ouvi eu, desgraçadamente).
Mas que importância, o tempo
novo é mais “divertido” e tudo menos não haver show, nem espectadores, nem
episódios diários, nem frases-comentário, nem cobertura televisiva assegurada
por essa esvoaçante revoada de repórteres que parecem sempre estar com febre
tal o altíssimo grau de desvelo com que oficiam. Não se sabendo aliás quem mais
contribui para o retrato deste singular estado de coisas, se os enlevados
repórteres, se o causador de tão entusiasmada militância e refiro-me obviamente
ao retrato que daqui resulta para um país que caiu em “instalação”. Uns
chamam-lhe “estabilidade” e outros “consenso” e também não se sabe qual dessas
expressões será, no caso, mais estéril ou mais falsa.
Convenhamos que o espectáculo
da nossa política hoje — na invejável leveza com que é interpretada no palco e
na não menos invejável condescendência com que é visto da plateia – dá que
pensar. Exige treino e paciência, não se muda assim de cânones e costumes num
ápice, há que reaprender a viver (a nova vida).
3. Claro que a forma mais cómoda, mais à mão, de “ler” o que acima
expus é remeter de imediato para o pessoal, fulanizar, evocar “sentimentos”,
falar em “antagonismos” pessoais. Antes fossem, arrumavam-se desconfianças e
discordâncias na prateleira das relações humanas. Menos sentimentalmente,
aflijo-me com a navegação: nem as rotas já percorridas parecem as mais
indicadas para a nossa geografia, nem os rombos entretanto provocados deixarão
o navio inteiro.
Dir-se-á que sou (muito)
minoritária. Paciência, nunca será isso que me fará fingir que acredito na
qualidade dos marinheiros.
Título e Texto: Maria João Avillez, Observador,
31-5-2016
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