Paulo Tunhas
Passos Coelho é mais compatível com a
nossa forma de vida democrática do que António Costa. Entre outras coisas, é
dotado de uma característica simpática: não acredita que as vacas voem
Dou o meu próprio exemplo,
meio envergonhado, apenas porque não me devo, nestas matérias, distinguir
praticamente em nada da maior parte das pessoas. Falta-me completamente o
interesse e a imaginação para adivinhar “jogadas” e “contra-jogadas” dos políticos.
Não tenho ao meu dispor nenhuma teoria da sociedade que julgue resolver de uma
penada o grosso dos nossos problemas e que me sinta obrigado a contrapor, com
provas definitivas, às dos outros. Não tenho, como alguns poucos efectivamente
têm, uma “visão de Portugal”. Nem sequer a filosofia política é a minha área de
interesse principal em filosofia, e menos ainda ambiciono (ou tenho predicados
para) pertencer à Igreja Universal da Politologia.
Estas múltiplas
incompetências, chamemos-lhes assim, não me impedem, e isso também o partilho
com a maior parte das pessoas, de ter uma ideia ou outra no que se refere às
coisas políticas e de elas, quanto mais não seja à força e governado por uma
preocupação de legítima defesa, me interessarem. Isso, pelo menos, em dois
planos. Em primeiro lugar, no plano muito geral que respeita ao tipo de
sociedade em que gostaria de viver. Em segundo lugar, no plano, mais restrito e
sempre pontual, do que parece certo e errado como meio para que essa sociedade,
que, pelo menos aproximadamente, é a nossa, não piore e, se possível, melhore.
Claro que os dois planos comunicam entre si, não são estanques. Mas não é
artificial distingui-los. Até porque as nossas crenças têm características
distintas num plano e noutro.
Senão, vejamos. No que
respeita às nossas crenças relativas ao tipo de sociedade em que desejaríamos
viver, não há maneira de distinguir verdade e erro. Pode-se crer no que se
quiser. Não só não há, em termos absolutos e universais, provas indisputáveis e
no sentido estrito a favor ou contra qualquer tipo de sociedade, como a
história e a etnologia nos mostram (e isso, por acaso, a história e a etnologia
mostram-nos mesmo) a extensíssima variedade das formas que os seres humanos
criaram para viverem em conjunto. Dizer que não há provas não nos obriga de
forma alguma ao relativismo ou a uma situação de indiferença. É perfeitamente
legítimo, é claro, ser-se comunista, liberal, social-democrata, ou o que se
quiser, e argumentar por uma posição contra as outras. E mesmo que um muito bom
argumento não seja nunca uma prova, ele pode ter um peso que os outros não têm,
e, quando há possibilidade de comunicação e discussão, pode ajudar a inclinar
alguém mais para um tipo de sociedade do que para outra.
O que é central aqui é, como disse,
que não há verdade nem erro. O comunismo, o liberalismo e a social-democracia
(falo dos produtos mais comuns à venda nas nossas sociedades) não constituem
doutrinas verdadeiras ou falsas. Pessoalmente, prefiro viver numa sociedade
onde a liberdade seja a maior possível, tanto no plano do comportamento
individual como no plano económico, onde as mulheres tenham uma situação de
igualdade por relação aos homens, onde se desenvolvam, de uma forma ou outra,
mecanismos para a protecção dos mais desfavorecidos e onde as várias concepções
de justiça em conflito encontrem modos de dialogarem entre si. Mas não vejo
maneira alguma de provar (repito: provar) que deva ser assim. Não passa, de
resto, um dia em que não tenha notícia, directa ou indirecta, de opiniões que
militam contra um ou outro destes desejos e até contra todos juntos. Verdade
minha, erro e irracionalidade dos outros? A questão não se pode, pura e
simplesmente, colocar assim.
Se passarmos agora para outro
plano, mais restrito, o do acerto dos meios para obtermos certos fins postos em
comum, a paisagem muda substancialmente. A questão da verdade e do erro passa a
fazer, à sua maneira, sentido. Tomemos o caso português. O PS, o PSD e o CDS
partilham realmente (no caso do PS, com eventuais excepções – nos outros casos,
se calhar, também, embora de forma menos notória) muitas posições comuns, com
as quais a maioria das pessoas, na qual me incluo, se identifica. Bloco e PCP
partilham-nas, quando as partilham, mais nominalmente do que realmente. A questão,
excluindo o problema das clientelas políticas e outras coisas assim, está
apenas nos melhores meios para atingir esses fins: liberdade, etc. E a escolha
deve-se fazer entre os meios mais convenientes para atingir os fins em questão,
com a devida atenção às circunstâncias e às possibilidades que se encontram
abertas.
E aqui entra a celebrada vaca
alada que António Costa jurou ser possível e que decidiu triunfalmente
incorporar no bestiário histórico do Partido Socialista e no seu circo
particular. Confesso que, como muita gente, fiquei perplexo com a facilidade
ontológica de António Costa na criação de novos seres mitológicos. O que
quereria ele mostrar? Quereria, banalmente, provar que tem graça? Quereria
dizer-nos que a muito falada “vontade política” (um conceito um bocadinho oco,
diga-se de passagem) nos pode conduzir a algo milagroso? Quereria mostrar que
um desejo de sociedade socialista (um projecto de sociedade socialista) possui
uma necessidade intrínseca capaz de vergar a realidade empírica?
Em qualquer dos casos (a
vontade de ter graça, vá lá, é só triste), a coisa tem mesmo significado.
Podemos perfeitamente, em matéria de projectos políticos, desejar certos fins
para a sociedade. Não há provas que nos possam desmentir. Mas, no que respeita
à obtenção de resultados no interior de um horizonte político comum, não convém
imaginar que as vacas possam voar. A catástrofe é garantida. E ouvem-se já
várias indicações nesse sentido. Muito provavelmente, além de um certo
oportunismo e irresponsabilidade, a tese metafísica sobre a existência das
vacas voadoras consagra apenas uma velha característica anti-democrática de uma
boa parte do pensamento socialista, que consiste exactamente em desejar impor
ao nosso horizonte político partilhado algo que nele não se encontra e que
releva de um plano em que o acerto e o falhanço, a verdade e o erro, não têm de
ser tidos em conta. Do plano da pura ideologia, pode-se talvez dizer, embora
não acredite que o nome elucide perfeitamente a coisa.
A conclusão é relativamente
simples. Por muito difícil de engolir que isso seja para muita gente, a direita
realmente existente, por ser menos tentada pela importação de crenças por
definição irrefutáveis para o plano da acção política, é mais democrática, mais
respeitadora de uma visão alargada do nosso horizonte comum de reflexão
política, do que a esquerda realmente existente. E é mais capaz de levar a cabo
o que é necessário para que a sociedade melhore, e isso mesmo no que respeita à
própria concepção de justiça que a esquerda gosta de considerar como bandeira
particularmente sua.
Se se quiser, para pôr nomes
numa realidade muito palpável, Passos Coelho é mais compatível com a nossa
forma de vida democrática do que António Costa. Entre outras coisas, é dotado
de uma característica simpática: não acredita que as vacas voem. Não acredita
no que lhe apetece crer, sem mais. António Costa, sim. António Costa tem o
assentimento fácil dos entusiastas delirantes. Por oportunismo e bruta vontade
de poder? É verosímil. Mas aqui a questão deixa de ser interessante e de nos
dizer respeito. Porque é que decidiu lixar-nos a vida e acreditar que as vacas
voam é lá com ele. O importante é percebermos que se trata mesmo de um padrão
de comportamento político que só nos pode fazer mal. Faz mal ser governado por
quem decide acreditar, sem inquérito, naquilo que deseja, pela simples razão
que o deseja.
Título e Texto: Paulo Tunhas, Observador,
2-6-2016
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