sexta-feira, 15 de julho de 2016

Não deixe o direito natural morrer! Legítima defesa e o samba do crioulo doido brasileiro

Thiago Pacheco

A “legítima defesa” entrou na ordem do dia depois que Gustavo Correa, o cunhado da apresentadora Ana Hickmann, matou um sujeito que, armado, invadiu o quarto de hotel onde estavam ela e uma comitiva.


Com os sucessivos recordes de homicídios – cerca de 60.000 por ano – é fácil constatar que o valor da vida anda um tanto baixo no Brasil. Já é corriqueiro encontrar na internet vídeos filmados por câmeras de circuito fechado e telefones celulares em que pessoas são executadas nas mais diversas situações: desde ladrões surpreendidos por policiais, passando por policiais executados por criminosos e alcagüetes torturados e mortos por integrantes das facções que delataram. De um ponto de vista estritamente “humanista”, seria possível argumentar que o prejuízo – o encerramento deliberado de uma vida humana – é o mesmo. Será?

Tão banal se tornou o assassinato no Brasil que não é de se censurar a imaginação por voltar tão longe quanto Caim e Abel, os fundadores, em nosso imaginário, do assassinato. Mas se imagine na seguinte situação: você é um ancestral do humano atual vivendo na era paleolítica. Está em sua caverna, com os outros integrantes do seu grupo, todos conhecidos, lascando algumas pedras e preparando armas para sua próxima incursão em busca de alimento. Nisso, ali irrompe, violentamente, o integrante de outro grupo, hostil ao seu, armado de uma machadinha também de pedra lascada, e avança brandindo o petrecho em sua direção. O que é que você faz? Lembrando que, naquela época, hashtags e textões não existiam.

Adiante um pouco o relógio da história: você é um índio Guarani e está pacificamente sentado no interior de sua oca quando ela é invadida por temidos Tupinambás, armados de bordunas eficientíssimas feitas de pau-brasil. Embora pertençam ao mesmo tronco lingüístico, é de se duvidar que uma boa conversa fosse resolver essa situação sem haver derramamento de sangue. Vá ainda mais longe, em ambos os sentidos: você está em um saloon do velho oeste, em plena corrida do ouro, quando um desafeto seu passa pela porta já sacando o Colt Peacemaker: você hesita ou saca imediatamente seu Smith & Wesson? Eu gostaria muito de dizer que, indagadas, 10 entre 10 pessoas diriam que “sim”, que reagiriam prontamente em todas essas situações. Mas vivemos em tempos estranhos, em que até a mais instintiva e natural reação do ser humano – reagir a uma agressão injusta em defesa da própria vida – vem sendo relativizada e “desconstruída”.

A “legítima defesa” entrou na ordem do dia depois que Gustavo Correa, o cunhado da apresentadora Ana Hickmann, matou um sujeito que, armado, invadiu o quarto de hotel onde estavam ela e uma comitiva – que incluía sua irmã, o cunhado, maquiadores e assessores de imprensa – baleando uma das pessoas e rendendo as demais. Gustavo entrou em luta corporal com o sujeito, e, na disputa pela arma, o matou com dois tiros na nuca. O agressor já havia baleado uma pessoa (a esposa de Gustavo) e ameaçava matar as outras. O que você faria?

A investigação policial conclui que Gustavo agiu em legítima defesa, isto é, matou uma pessoa em uma situação em que, se não o tivesse feito, seria morto – ou, no mínimo, seria obrigado a assistir outras pessoas serem mortas enquanto esperava pela chegada da polícia. Uma das mais antigas tradições jurídicas é tornar isenta de pena essa conduta: a defesa da própria vida (ou da de terceiros) de uma agressão injusta. A noção se auto-complementa: a legítima defesa passa a ser uma “agressão justa” na medida em que o atacante ameaça a vida da vítima sem uma razão apta a justificar sua conduta. Por isso é que, quando entra em cena o “dever legal” de policiais, por exemplo, a reação de criminosos a uma abordagem nunca será (pelo menos, por enquanto…) entendida como “legítima defesa”: os criminosos estavam violando a lei, portanto, sua conduta é injusta; a do policial, ao abordá-lo, constitui cumprimento de sua função e de seu dever legal.

Seguimos: descobriu-se depois que o invasor do quarto de Ana Hickmann era um psicopata obcecado pela apresentadora, que já havia feito ameaças em redes sociais, e que planejou o ataque procurando saber se no hotel havia detector de metais na portaria, por exemplo. Nem seria preciso ir tão longe: afinal ele baleou uma pessoa desarmada dentro do quarto que invadiu. A única arma presente no recinto era a dele, agressor, tomada a muito custo e em luta corporal. Não parece haver dúvida de que o ato corajoso de Gustavo Correa é um exemplo perfeito e acabado de legítima defesa: foi o que concluiu o inquérito policial, depois de perícia balística que revelou que os tiros que atingiram o invasor não foram “de execução”, ou seja, disparados de cima para baixo, em situação em que o alvejado estivesse rendido e ajoelhado, por exemplo. Mas a opinião do delegado de polícia pelo arquivamento do inquérito foi surpreendentemente ignorada pelo Ministério Público, como se na tortuosa instrução criminal vindoura fosse possível descobrir mais do que a investigação policial revelou. Entrevistado, o promotor responsável pela denúncia – uma espécie de rockstar do tribunal do júri de sua comarca, com mais de 1.000 julgamentos no currículo – afirmou que, pelo fato dos tiros terem atingido a nuca do invasor, a legítima defesa estava descartada. Eu disse acima que me surpreenderia se 10 entre 10 pessoas não respondessem que “reagiriam” nos exemplos dados de agressão inesperada, mas nunca subestime o Brasil: entre as reações naturais de indignação pela apresentação da denúncia por homicídio doloso, muita gente a saudou, afinal, “dois tiros na nuca não é legítima defesa!”.

É importante esclarecer o seguinte: a legítima defesa pode ser exercida com excesso, e exemplos de sala de aula não faltam. Se um sujeito avança em sua direção para agredi-lo com um travesseiro, atirar nele com um fuzil não é uma resposta proporcional. O art. 25 do Código Penal determina que “entende-se em legítima defesa quem, usando moderadamente dos meios necessários, repele injusta agressão, atual ou iminente, a direito seu ou de outrem”. Grosso modo, uma agressão injusta feita com um travesseiro deve ser devolvida com um meio parecido – uma almofada, uma toalha molhada, um sapato? – e não com uma escopeta. O ponto é: é possível matar com um travesseiro? Só se você estiver dormindo e for asfixiado pelo agressor. Em igualdade de condições, presume-se que não. Assim, se alguém o ataca com um travesseiro, é condição para a que a defesa seja legítima que a agressão seja repelida com meios proporcionais: afinal, a ameaça feita com um travesseiro não é de morte; no máximo, de indignidade (e felizmente a “legítima defesa da honra” é página virada).

Voltemos ao caso concreto: rendido por um agressor, você, sua esposa (já baleada) e outras pessoas inocentes e desarmadas estão sob a mira de uma arma de fogo. O que é que você faz? Gustavo Correa se lançou sobre o atirador, lutou com ele, e na briga pela arma, na luta corporal renhida, de vida e morte, conseguiu disparar duas vezes em direção da cabeça do invasor, que estava intento em matar os ocupantes do quarto (já havia baleado um deles). Os tiros o atingiram na nuca; foram disparados – a perícia provou – enquanto Gustavo lutava para não morrer (e evitar que outros ocupantes do quarto fossem alvejados). Legítima defesa, certo? Para o promotor rockstar e muita gente na internet, não. Nasce no pé mais uma jabuticaba brasileira: se você toma a única arma no recinto, trazida pelo agressor, e, em luta corporal, o atinge na região da cabeça, você não está em “legítima defesa” – é homicídio doloso, é assassinato. Você deveria esperar a polícia; pacientemente, observar sua esposa baleada e os demais ocupantes do quarto serem executados, um a um, enquanto a ajuda estatal não chega. Se atracar com um homem armado – evidente ato de coragem – se torna opressão. Entram na equação, aí, outros elementos, que deveriam ser absolutamente estranhos à noção de legítima defesa: a condição sócio-econômica dos envolvidos. Nesse sentido, a decisão do promotor de justiça rockstar é um tijolo da construção em que legítima defesa vai passar a ser aferida com a comparação das declarações de imposto de renda das partes envolvidas: se quem se defende é cunhado de uma pessoa bem-sucedida, e quem ataca é de família humilde, a legítima defesa deixa de sê-lo: a luta de classes substitui a luta pela vida. É exatamente o que está acontecendo nesse caso. E isso é extremamente pernicioso, e um sinal mais do que claro que o direito – em uma de suas instituições mais antigas e transcendentais – está sendo infectado pela mentalidade do marxismo cultural, que força a luta de classes a tudo.

Volte um pouco mais no tempo: Abel não reagiu porque Caim era seu irmão. Não acreditou no que estava acontecendo, e enquanto pensava nisso, passou tempo suficiente para que fosse morto. Foi morto por algumas moedas – e assim nasceu o assassinato. Você está disposto e a ser o próximo Abel? 
Título, Imagem e Texto: Thiago Pacheco, Implicante, 15-7-2016

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