sexta-feira, 29 de julho de 2016

Vernaculês

Jacinto Flecha
Um amigo que nasceu em Berlim, depois veio para o Brasil e transitou por vários países, reside e exerce atividades diplomáticas nos Estados Unidos. Esse vasto background multinacional recomenda, numa ligação para o celular dele, não iniciar a conversa com a pergunta habitual – onde você está? – e globalizar a pergunta assim: Em que país você está? Seria uma surpresa ele estar no país que imagino.

Ele tem o bom costume de conversar na língua do interlocutor, e procura fazê-lo usando os termos correntes no respectivo país, o vernáculo mais atualizado possível. Recentemente ele me agradeceu por e-mail o envio de um PPS com belas fotografias de Sachsen, e perguntou-me como deveria dizer em vernáculo – em português, talvez numa próxima viagem ao Brasil – o nome desse estado alemão. Informei nosso Saxônia, e acrescentei o Saxe francês e o Saxony inglês.

Kriebstein Castle

Usar corretamente a língua do interlocutor é uma atitude cavalheiresca, muito elogiável, mas não isenta de dificuldades e complicações. Especialmente quando não se trata exatamente do vernáculo, mas um vernaculês com palavras que lembram longinquamente o original estrangeiro, muitas vezes com insinuações e duplo sentido.

Creio que o meu amigo desconhece pelo menos uma dessas vernaculidades. Durante uma conferência dele no Brasil, referiu-se a um imél que havia recebido, e o meu vizinho no auditório perguntou-me o que é isso. Esclareci que os americanos pronunciam assim o e-mail. Provavelmente ele teria usado nosso vernaculês, se soubesse que os brasileiros pronunciam mail de acordo com os caracteres fonéticos meil, como indicam os dicionários.

Os americanos inventaram o e-mail e deram-lhe este nome, mas resolveram pronunciar imél, sabe-se lá por quê. Imagino que alguém poderia confundir correio eletrônico (e-mail) com algum correio masculino, pois male (macho) e mail (correio) têm representação fonética igual nos dicionários. Nesse mundo que ainda não despachou para o hospício quem considera iguais um menino e uma menina, é bem possível alguém confundir macho com correio. Não é minha culpa se o mundo está atolando a toda velocidade nesse tipo de “progresso”, e a preocupação vernacular nem sempre elucida loucuras do gênero (sem insinuações intencionais...).

Outro exemplo bem próximo deste. No país onde se inventou a copiadora Xerox, ninguém entenderá se você pedir uma xerox (no sentido de cópia). Se quiser arriscar, pode pedir uma copy, isso deve bastar. Mas xerox em vez de zírocs, ninguém saberá do que se trata. E se um americano pedir uma zírocs no Brasil...

Ao entrar numa lanchonete, é comum encontrarmos num painel o preço de um X-burguer, X-salada, etc. Nenhum brasileiro terá dúvida ao pedir seu sanduíche identificado por aquele X. Mas um americano ou turista de qualquer origem precisará adivinhar que nossa pronúncia do X fica bem próxima de cheese (queijo), daí o nosso vernaculês para os tais sanduíches.

Sempre estranhei a tradução dos franceses para o nome da capital inglesa. London ficaria muito mais fácil dizendo-se Londón, com a vantagem de lembrar um pouco o big-ben. Mas parece que os franceses não têm muita preocupação com esse tipo de facilidades. Imagino que alguma rixa ou zombaria mútua, durante as centenas de guerras entre eles, tenha originado a introdução desse inexplicável R de Londres.

Pode também ter sido alguma insinuação sobre londrès (charuto). A única certeza é que os franceses puderam manter neste caso o costume de engolir letras sem conta no final das palavras. A grafia nunca muda, eles só economizam na pronúncia. Quanto a nós, incorporamos a grafia Londres, devido à grande influência que recebemos do francês no início do século XX. Mas pronunciamos direitinho todas as letras.
        
Um caso bem conhecido de tradução equivocada é canguru. Quando o Capitão Cook chegou à Austrália, a atenção dos tripulantes foi atraída para esse marsupial, e alguém perguntou a um nativo, em inglês, que animal era aquele. O nativo disse na própria língua algo como ken-ga-rú. Os ingleses entenderam que esse era o nome do animal, e passaram a identificá-lo como kangaroo. Mas o que o nativo respondeu ao inglês significa apenas não estou entendendo. Provavelmente os nativos de hoje continuam usando a palavra deles, mas sabem também que os gringos dizem não estou entendendo, quando surge algum canguru.
        
Não lhe parecem bem complicadas as questões de vernaculês pra lá e pra cá? Podemos fazer grande esforço para falar como os estrangeiros, mas restará sempre uma zona intransitável. Por exemplo, a pronúncia do sibilante TH do inglês; o gutural CH do alemão; o R tremulante do italiano; o som do U francês, tubular e híbrido (I+U); o melodioso ÃO do brasilês; e haja entonação musical para se pronunciar qualquer palavra, frase ou sílaba do chinês.

Além das diferenças de sintaxe, envolvendo qualquer situação intermediária entre ordem direta absoluta e ordem inversa absoluta, podemos desistir de encontrar a exata entonação da outra língua. Aprende-se naturalmente desde o berço, e usa-se ao longo de uma vida inteira, daí o gringo só conseguir uma aproximação.
        
Já que falamos em gringo, consta que este qualificativo surgiu quando um inglês teve que ensinar como se usam os semáforos: Quando acende o verde (Green), você pode ir (go) – Green, go! Green, go!
Si non è vero è bene trovato. 
Título e Texto: Jacinto Flecha, ABIM, 29-7-2016

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