O ciclo petista é uma página virada e o
impeachment não abre as portas do inferno
Luiz Werneck Vianna
Foi bonita a festa, varreu
para longe o azedume que nos doía na alma. Pena que logo terminou, mas não dá
para afastar da memória a multidão enlevada no ato de ocupação popular do
Boulevard Olímpico, as nossas vitórias esportivas, poucas, mas boas, inclusive
no Maracanã da Copa perdida em 1950, e até o surpreendente êxito da organização
de um evento tão complexo como a Olimpíada. As cerimônias de abertura e de
encerramento dos jogos, ambas belíssimas e de pungente simplicidade, souberam
narrar o enredo da nossa cultura e da nossa original civilização, tornando
patente que 500 anos de História não foram perdidos, como sustenta essa
historiografia de butique em moda, e que contamos com uma plataforma segura
para seguirmos em frente.
O caminho à frente, ninguém
duvida, não será fácil. Processos de impeachment presidenciais são doloridos e
deixam marcas, e este aí promete não ser diferente. Venha o que vier, a
experiência vivida sob o ciclo petista, especialmente na condução da política e
da economia sob o governo Dilma, é uma página virada na nossa vida republicana.
O nacionalismo autárquico, o decisionismo sem freios do Poder Executivo, o
capitalismo de Estado com sua perversa indistinção entre as esferas do público
e do privado, o revival do terceiro-mundismo demonstraram-se práticas
desastrosas cujos efeitos são sentidos por todos, sobretudo pelos mais
vulneráveis.
De seguro, temos em mãos uma
identidade cultural, tal como a celebramos nas festas olímpicas, e uma
arquitetura institucional resistente às adversidades, cuja resiliência tem sido
comprovada em meio ao furacão a que fomos expostos. Faltam-nos os partidos e um
rumo. Encontrá-los demanda tempo por que diante das ruínas que sobraram da
Operação Lava Jato – e não só por ela – não há muito que salvar.
O PT, maior partido da
esquerda, logo que se fez governo abandonou a vocação que o trouxe ao mundo,
convertendo-se num partido de Estado com todos os vícios inerentes a formações
partidárias desse tipo; o PSDB, por sua vez, findos os anos de fastígio dos
seus longos anos de governo, acomodou-se aos louros obtidos com a execução
bem-sucedida do Plano Real e se reduziu a um partido de quadros sem raízes na
vida popular. O PMDB, ao esgotar a agenda das lutas pela redemocratização do
País, perverte-se numa agremiação a reunir caciques regionais, com frequência
originários de antigas oligarquias, sem alma e luz própria, estrangeiro aos
temas emergentes numa sociedade em intenso processo de mutação. Os demais,
ancilares, apenas vêm contando para a composição de coalizões governamentais,
sem âncoras sociais e de concepções do mundo que lhes prometam melhor destino.
Quanto aos rumos, o horizonte
é igualmente sombrio. O anacronismo em que se deixou enlear o pensamento da
esquerda, ou embalada pelas promessas do pragmatismo reinante – do qual,
reconheça-se, colheu frutos em curto período – ou porque fez ouvidos moucos aos
processos que fizeram o mundo passar a girar em outros gonzos a partir da
aceleração do chamado fenômeno da globalização e suas profundas repercussões
societais e ambientais, fixou-a no tempo em que vigia o primado da categoria
Estado-nação.
Sob o governo Dilma Rousseff,
mais que no de Lula, essa categoria exerceu papel de centralidade na estratégia
governamental, confundindo-se as tendências inexoráveis favorecedoras da
mundialização da economia com neoliberalismo. A estatolatria, malsinada marca
de origem da nossa formação, tornou-se, então, a referência da política,
perdida de vista a enérgica emergência da sociedade civil desde as lutas pela
democratização do País e que se atualizou com as manifestações de junho de
2013.
Essa esquerda dá as costas ao
Marx que reconhecia na mundialização da economia o momento propício à
ultrapassagem do capitalismo; ao Gramsci que bem antes de Habermas já
reconhecia o imperativo de se preparar a transição para uma ordem cosmopolita;
para não falar da moderna teoria social, Habermas à frente, como nas obras de
A. Giddens e U. Beck, entre outros, que têm na auto-organização do social a
pedra de toque de suas utopias realistas, oxímoro que abriga, na cena
contemporânea, os ideais de igual-liberdade.
Regrediu-se ao universo mental
dos anos 1950, alçando-se o populismo centrado no conceito de Estado-nação a
uma política de emancipação social de um povo explorado. Não se temeu o
exagero, sustentando alguns que o populismo latino-americano, mais do que um
fenômeno da periferia do mundo, deveria universalizar-se no Ocidente
desenvolvido. A dominação carismática escapou do baú das piores décadas do
século passado para se tornar fonte de legitimação do poder de uma
personalidade tida como providencial. E isso num momento em que aqui e em boa
parte do mundo a sociedade reclama o direito de participação na tomada de
decisões na esfera pública.
Na modalidade do populismo
praticado pelo PT, longe de ser de mobilização, como noutras experiências
vizinhas à nossa que conviveram mal com o sistema da representação política,
ele se revestiu, mascarado pelo reconhecido carisma de Lula, de um caráter
tecnocrático, insulando-se a tomada de decisões nas agências e nos aparelhos
estatais, a serem respaldadas no Poder Legislativo, pelo bizarro
presidencialismo de coalizão então adotado. Esse modelo não era fácil de ser
seguido, particularmente por quem não detinha carisma e era refratário à vida
parlamentar, caso da presidente Dilma, cuja opção de governo foi extremar à
outrance o decisionismo do Executivo, com o que selou seu destino político no
processo de impeachment ora concluído.
O impeachment não nos abre as
portas do inferno, como desejam os que nada entenderam do que se passou. Mas
eles são, felizmente, minoria e não terão como resistir ao poder de reflexão da
sociedade, que apenas começou, sobre os infaustos acontecimentos que nos
trouxeram a ele.
Título e Texto: Luiz Werneck Vianna, Sociólogo, PUC-RJ,
Estado de S. Paulo, 4-9-2016
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