segunda-feira, 31 de outubro de 2016

A casta

Helena Matos

Devidamente aglutinada nas esquerdas, a casta fez do controlo do Estado o seu objectivo e de um Estado controlador o seu programa. O resto é folclore e conversa.

Drones. Agentes inflitrados. Cruzamento de dados. – Não não estou a falar de nenhuma operação de combate ao narcotráfico mas tão só dos meios que ou já possui ou quer vir a ter ao seu dispor a Autoridade para as Condições do Trabalho (ACT). Para quê? Para investigar as empresas. Privadas, claro, porque no Estado não entra a zelosa Autoridade para as Condições do Trabalho. Ainda esta semana fomos informados que “O combate à precariedade das relações laborais, designadamente aos falsos recibos verdes, falsos estágios e falsas bolsas, é o objetivo de um acordo que envolve o Governo, o Bloco de Esquerda e, segundo o “Jornal de Negócios”, o PCP. Acordo entre Governo e Bloco de Esquerda só se aplica às empresas privadas”. Ou seja, o “combate à precariedade”, seja isso o que for (as notícias sobre o mundo laboral são uma sucessão de chavões e sound bytes em que nunca se percebe o que está a ser negociado), apenas se aplica ao sector privado. No Estado “os falsos recibos verdes, falsos estágios e falsas bolsas” podem continuar.

Portugal é cada vez mais um Estado que legisla a seu favor e cria excepções que isentam os seus protegidos dos deveres, razoáveis ou injustos, que impõe aos demais. Envolto na retórica do “público”, do “é nosso” do “é do Estado é de todos nós” (a PT era sangue do nosso sangue, não era?) usando o imaginário da velha luta de classes, dos pobres bons contra os ricos maus, dos lucros milionários que podiam acabar com as pensões de miséria… o Estado cresce. A verdadeira riqueza está na capacidade de influenciar o Diário da República. E o verdadeiro poder sente-se quando se consegue ficar isento do que se impõe aos demais. Esta excepcionalidade estatal está já a entrar no patamar inevitavelmente grotesco da excepção dentro da excepção, como acontece com a legislação feita à medida do gestor da CGD, António Domingues.

Fazer parte desse país-Estado ou conseguir ser tratado por ele de uma forma diferenciadamente privilegiada gera um sentimento de casta. E se essa diferenciação choca no momento da atribuição de poderes, então que termo usar para descrever a absoluta tolerância para com a ineficácia e a irresponsabilidade, desde que praticadas em nome do Estado? Fixe-se este número: 187 milhões de euros. Contas por alto e não contabilizando o ordenado que lhe pagamos como vereador, os arrebatamentos do vereador da Câmara Municipal de Lisboa (CML), José Sá Fernandes já nos custaram 187 milhões de euros. Para quem estiver assombrado com a quantia eu passo a detalhar: foram 18,1 milhões de euros de indemnização para o consórcio responsável pelo túnel do Marquês de Pombal, obra interrompida graças ao activismo do agora vereador.

Depois foram 29,5 milhões de euros por conta dos juros que a Bragaparques terá pago aos bancos onde aquela empresa contraíra um empréstimo de 101 milhões de euros para comprar os terrenos do Parque Mayer e da Feira Popular. Por causa da suspeição que recaiu sobre este negócio, houve eleições na CML, Sá Fernandes passou a “Zé que faz falta” e em seguida a vereador e desde então até agora aos contribuintes portugueses não param de chegar as facturas da demagogia que caracterizou todo esse caso: deliberou há dias um tribunal que têm de ir mais138 milhões de euros para a mesma Bragaparques por assuntos que tinham ficado pendentes. Tudo somado chegamos aos 187 milhões de euros. Alguém se indignou? Alguém entrevistou Sá Fernandes? Que manto de invisibilidade caiu sobre este homem que durante anos foi notícia todas as semanas? Que surgia nas notícias qual cavaleiro branco em luta contra tudo o que de mau havia na cidade?…

Denominador comum a todos estes casos: um país em que o Estado não se coíbe de legislar a seu favor, cria excepções que isentam os seus protegidos dos deveres, razoáveis ou injustos, que impõe aos demais e sabe que no fim pode sempre lançar mais uma taxa ou alterar um imposto para ir buscar o dinheiro que está em falta. Na verdade a casta a si perdoa quase tudo. Só não perdoa que lhe toquem no que chama seu, a saber o Estado mais os seus regimes especiais, as suas excepções, as suas parcerias privilegiadas, os seus estatutos únicos…

O comunismo acabou quando o Muro de Berlim caiu. Pouco depois o socialismo entrou em coma quando o dinheiro acabou. Mas o óbvio falhanço dessas ideologias em nada serviu para ajudar os seus apoiantes a reflectir. Pelo contrário, o fim da URSS libertou os comunistas da História. Quanto aos socialistas sem dinheiro para fazerem “socialismo de rosto humano”, esqueceram-se do rosto humano, atiraram-se para os braços dos inimigos íntimos de ontem (os comunistas) e, devidamente aglutinados nas esquerdas, fizeram do controlo do Estado o seu objectivo e de um Estado controlador o seu programa. O resto é folclore e conversa.
Título e Texto: Helena Matos, Observador, 31-10-2016

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