quinta-feira, 20 de outubro de 2016

Da austeridade intragável à saborosa austeridade

Helena Garrido

António Costa está a ensinar-nos a desenhar austeridade apoiada pelo eleitorado. O OE ou os salários da CGD são arquitecturas e decisões para o “Homo sapiens” e não para o racional “Homo economicus”.

Pedro Passos Coelho representa a política económica do “Homo economicus”, António Costa o “Homo sapiens”. Assim se concluía numa conversa em que o tema era o Orçamento do Estado e a extraordinária habilidade política do primeiro-ministro para tornar a austeridade uma política quase popular.

A proposta de Orçamento do Estado para 2017 consagra uma política que é a mais contraccionista desde 2014. Basicamente a austeridade foi interrompida por causa das eleições em 2015 e da consolidação eleitoral do PS em 2016 e regressa em 2017. Neste momento António Costa tem as mãos politicamente mais livres e pode concentrar-se melhor em apenas dois objectivos: manter em alta as intenções de voto e eliminar o risco de os investidores internacionais fugirem ditando a necessidade de um segundo resgate. (A DBRS vai pronunciar-se esta semana e a proposta de OE 2017 resolve parte do conflito em que estava).

Os dois objectivos, eleitoralismo e austeridade, seriam inconciliáveis se a política económica estivesse a ser desenhada tendo como referência o “Homo economicus”, uma personalidade racional, não emotiva, que tem uma hierarquia de preferências estável e fixa, valoriza de igual modo as perdas e os ganhos e procura o seu próprio interesse. Ou mesmo se estivesse a ser desenhada no sentido de maximizar o crescimento por via do investimento.

Mas não é assim que está desenhada. A proposta de Orçamento do Estado para 2017 está feita para ser bem aceite pelo “Homo Sapiens” ou, como diria o nobel da Economia Daniel Kahneman, por “Humanos” e não por “Econs”, uma outra versão do “Homo economicus”. Os “Humanos”, por contraponto aos “Econs”, na versão de Kahnman, têm uma visão do mundo “limitada pela informação disponível num determinado momento – Só Há Aquilo Que Vês”. Por isso não conseguem ser lógicos e coerentes como os “Econs”. Além disso, nem sempre são egoístas, as suas preferências são instáveis e lutam muito mais por manter o que têm do que para obterem ganhos – sofrem de aversão à perda.

Intuitivamente ou não, António Costa vai desenhando uma política económica que tem os ingredientes certos para ter sucesso num mundo de “Homo Sapiens”. Começou por prometer “virar a página da austeridade” e assim criou uma âncora de previsão para cada um de nós, que nos conduz a “ver” menos austeridade do que aquela que existe. Exactamente o oposto de Pedro Passos Coelho, quando prometeu “ir para além da troika”. (Sim, é verdade que as conjunturas eram diferentes e o anterior primeiro-ministro estava a falar mais para fora do que para dentro, mas o seu discurso actual continua ser virado para o “Homo economicus”.)

“Só Há Aquilo Que Vês”, o princípio SHAQV de Kahneman, é a lei geral da política que estamos a viver. Vejamos, apenas como exemplo, 7 casos do Orçamento do Estado e da actualidade: a não divulgação do quadro comparativo das receitas fiscais; o reforço da tributação indirecta; o novo imposto sobre o património; a escolha feita na actualização das pensões; o agravamento dos impostos no alojamento local; a reversão da reversão da sobretaxa e finalmente os salários da administração da CGD, o único caso com riscos eleitorais.

1. Pela primeira vez desde há pelo menos mais de duas décadas, o relatório do Orçamento do Estado não publica o clássico quadro das receitas fiscais por imposto comparando-o com o do ano anterior. Claro que é possível construir parcialmente esse quadro através dos mapas da proposta de lei, mas o “Homo sapiens”, contrariamente ao “Economicus”, é preguiçoso, trabalha com a informação disponibilizada. (E os media estão com recursos muito escassos). E assim o que não se vê não entra na avaliação da política.

2. O reforço da tributação indirecta e as “taxas de taxinhas”, nas quais se incluem as novas tributações por produtos – os refrigerantes, algumas bebidas alcoólicas e as balas, por exemplo –, seguem igualmente a lei SHAQV e os valores emocionais. A tributação indirecta não se vê e aquela que incide sobre o consumo de bens considerados “maus” dá a ilusão da escolha na linha da sabedoria popular: “quem tem vícios que os pague”. Repare-se que a tributação indirecta foi sempre defendida pelos economistas considerados mais liberais, por ser mais eficiente. De acordo com esta tese, as políticas redistributivas (a equidade) devem ser garantidas através da despesa – como os subsídios e apoios sociais – e não por via dos impostos directos. Ver um governo apoiado pela esquerda a apoiar, ainda que indirectamente, esta tese é também revelador da queda da ideologia.

3. O adicional sobre o IMI, que consagra uma taxa de 0,3% sobre valor patrimonial imobiliário que excede os 600 mil euros, ao mesmo tempo que se elimina o imposto de selo sobre imóveis acima de um milhão de euros, traduz-se num significativo desagravamento dos “mais ricos”. Ou seja, todos os que têm casas de valor superior a um milhão vão pagar menos impostos em 2017 do que em 2016. Mas aquilo que se afirmou foi que o Governo ia lançar um imposto sobre os que acumularam património imobiliário de 600 mil euros. Obviamente uma fortuna para a esmagadora maioria dos cidadãos e para o “Homo sapiens” que usa apenas a informação que está mais à mão.

4. A política seguida nas pensões usa igualmente o conhecimento da natureza dos “Humanos” jogando com a aversão à perda que os caracteriza – e que dificulta as reformas e todas as políticas de promoção da igualdade. Além da actualização em linha com a inflação, há três decisões nas pensões: proceder a um aumento extraordinário em Agosto no montante de dez euros para pensões 275 e 628 euros, não fazer esse aumento extraordinários nas pensões mínimas sociais e rurais e acabar com a Contribuição Extraordinária de Solidariedade (CES) que incide sobre pensões acima de 4.500 euros. Com esta política garante-se o contentamento generalizado, já que ninguém perde e o grupo que não ganha tem reduzida ou nula capacidade de intervenção no espaço público.

5. O agravamento da tributação dos rendimentos de alojamento local – o imposto passa a aplicar-se sobre 35% das receitas sem vez de 15% – constitui uma perda significativa de rendimento para quem tem esta actividade, mas para os eleitores em geral será percepcionada como justa. Usando o mecanismo de saltar para as conclusões, de que o cérebro é perito, é elevada a probabilidade de se considerar que se estava a praticar uma taxa efectiva baixa quando comparada com o arrendamento em geral, não se levando em conta que existem custos adicionais.

6. A reversão da reversão da sobretaxa, ou seja, o facto de o Governo ter anulado uma decisão que já estava consagrada na lei – a eliminação total da sobretaxa em Janeiro –, reúne condições para não ter qualquer custo político. Mais uma vez podemos aqui aplicar o princípio segundo o qual as pessoas lutam mais para não perder do que para ganhar. Como ainda não tinham ganho nada, nada perdem, e ao longo do ano vão ganhar. O Governo limita-se a não respeitar um compromisso que lhe custará criticas usando a expressão de António Costa: “palavra dada, palavra honrada”. Mas a probabilidade de isso se traduzir em perdas eleitorais é mínima, se não mesmo nula.

7. Os novos salários da administração da CGD é o único caso em que o Governo usa argumentos do “Homo economicus”, de racionalidade pura e mais focado na eficiência do que na equidade. E é exactamente o caso que lhe pode custar mais eleitores como já bem percebeu o Presidente da República. Uma das características dos “Humanos” é a preocupação com a sua posição relativa: a perda é melhor aceite quando todos perdem e a sua posição relativa não se altera. No quadro actual, em que muitos estão a ganhar um bocadinho de rendimento ou a pensar que vão ganhar, e basicamente ninguém perde, o risco de custos eleitorais é menor do que na era da troika quando todos estavam a perder rendimento. Mas existe.

Na proposta de Orçamento de Estado com a maior austeridade desde 2014 é interessante verificar como a política contraccionista está desenhada sem que a esmagadora maioria dos portugueses percebam que vão ter menos poder de compra. É um Orçamento que vê a economia povoada por “Homo sapiens” com todas as suas limitações e não por “Homo economicus”, racional e com toda a informação.

Em todo o seu esplendor, o primeiro Orçamento livre de António Costa afirma-se sem oposição popular porque “Só Há Aquilo Que Vês” – e os impostos indirectos não se vêm – e porque sofremos duas vezes mais com as perdas do que com os ganhos – e ninguém sente que perde. O que as sondagens já nos dizem é que há mais “Homo sapiens” do que “Homo economicus”. E assim se transforma a austeridade intragável numa saborosa austeridade. 
Título e Texto: Helena Garrido, Observador, 20-10-2016

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