sábado, 22 de outubro de 2016

O estado da nação e a burrice dos angolanos

Rafael Marques de Morais


Excelência,

A essa hora deve ser enorme o alívio que sente, depois da expectativa gerada em torno do seu discurso sobre o Estado da Nação. Vários jovens pediram-me para analisar o que julgam já ter sido uma desilusão. Esperaram tanto para nada, e agora lamentam.

Ouvi também o Sr. Samakuva, líder da oposição, referir-se ao seu discurso como evidência do seu desconhecimento da realidade.

Por sua vez, os seus defensores brindaram a sociedade com análises que levaram as pessoas a tentar, por si próprias, perceber o que se passa na cabeça do presidente.

Há ainda os estrangeiros que se surpreenderam com o seu ataque aos Estados Unidos da América. Esses estado-unidenses que tanto esforço têm feito, do ponto de vista político e da saúde dos angolanos, através do programa de luta contra a malária, para serem seus amigos. A malária e a corrupção são as principais causas da morte desnecessária de milhares de angolanos por ano. É na luta contra a corrupção que o camarada presidente se encontra isolado, a lutar contra os seus próprios demónios.

Partilho do seu alívio. Ambos conhecemos muito bem a memória curta que define o comportamento da sociedade angolana em relação ao seu governo. Dois, três dias, no máximo, é quanto basta para o povo ignorar a realidade. É aqui que o Sr. Samakuva perde a razão na análise da sua pessoa. Tanto o Sr. presidente como o povo conhecem muito bem a realidade, apenas a ignoram.

Como não espero nada do Sr. presidente, nem mesmo a sua saída voluntária do poder ou por vontade popular, prefiro conversar consigo. Sei que me ouve e que procura com muito esforço ignorar-me, mas a colisão constante entre a minha vocação de cidadania e o seu exercício do poder aproxima-nos cada vez mais.

Excelência,

Melhor do que ninguém, o Sr. sabe que a raiz dos males que agora o acusam de ser o executor está no núcleo da sociedade angolana: a família. Toda essa expectativa gerada em torno do seu discurso não é senão um acto de desespero dessas mesmas famílias, que agora não sabem como justificar o seu apego à teoria do fingimento enquanto a ideologia que sempre permitiu aos angolanos evitar responsabilidades pelo bem comum.

Há muito que nos dedicamos à teoria do fingimento. Essa é a teoria da ausência de responsabilidade individual pelo Estado da Nação. É a teoria que reproduz a mentalidade de colonizados e submissos ou de neocolonizadores e opressores sob a capa do medo, para os primeiros, e da autolegitimidade e do “direito de exclusividade”, para os segundos. É justamente aqui que a família desempenha um papel instrumental na manutenção do complexo de inferioridade da maioria dos angolanos, em relação à minoria instalada no poder.

Foi no seio das famílias que a ditadura, a corrupção, a desumanização e a indignidade dos angolanos – esses males que hoje definem a sua presidência, o seu regime e a sua pessoa – encontraram terreno fértil. Lembro que lacrimejei com o relato do major João Raul Domingos (reformado) sobre o seu testemunho de um episódio dos massacres do 27 de Maio de 1977. Um conhecido comissário (governador) provincial, para provar a sua lealdade a Agostinho Neto, dirigiu-se ao salão nobre do Ministério da Defesa, então transformado em cela, sacou da pistola e ali, diante de todos, fuzilou o seu próprio filho, então suspeito de ter conspirado com os apoiantes de Nito Alves.

São as famílias que impedem os seus filhos de pensar diferente. São as famílias que entregam os seus filhos para servirem como agentes da polícia e do exército, esses mesmos que hoje se viraram contra o povo e que agem como força de ocupação. É só apreciar os processos de demolições contra os pobres levados a cabo por forças policiais e militares, o esbulho de terras e a corrida diária contra as zungueiras (aproveite e instale no seu telemóvel o jogo Zungueira Run – Zungueira Foge – e teste a sua agilidade para fugir dos fiscais com uma bacia de frutas na cabeça).

A culpa não é sua, Sr. presidente.

Posso apenas imaginar como muitos o invejam por ter sido capaz de nos manter burros por tanto tempo, apesar de nem sequer o Sr. presidente ser brilhante, ou perto disso.

A verdadeira segurança de Estado reside nos pais que censuram os filhos, nos tios, primos e amigos que “aconselham” os seus entes queridos a não se meter em política, a não contestar, a ficarem à espera.

O povo não tem noção do que é o Estado. O Sr. tem sido hábil a hipnotizar as massas. Esse povo sem rosto, na sua ignorância ou no seu fingimento, julga ou age como se o Estado fosse propriedade do presidente ou do MPLA. Por isso o povo não percebe, ou, mais uma vez, finge que não percebe, que a corrupção e o medo são as principais causas da mortandade anual entre os angolanos. A malária, que é acusada de ser a principal causa de morte oficial no país, é uma consequência da falta de saneamento básica e da corrupção no sector da saúde. Por exemplo, Angola tem a maior taxa de mortalidade infantil do mundo. Alguém poderá dizer que essas almas inocentes morreram porque não tinham medo de afrontar o poder? Essas malogradas crianças desafiaram o camarada presidente?

Com essa mentalidade popular, Sua Excelência não teve medo de nomear os seus filhos para altos cargos de responsabilidade pública. O camarada José Eduardo dos Santos não teve medo de ir ao parlamento dizer absolutamente nada, porque sabe que 24 milhões de angolanos têm medo de si, porque não o conhecem e nem sequer percebem que, acordando, bastariam horas para o acompanhar até à sua casa particular, no Miramar ou no Morro Bento, e fixá-lo aí como reformado.

No Brasil, onde estive há dias, durante um encontro com jovens angolanos só ouvi lamentações sobre o seu governo, a oposição, a sociedade civil. Disse aos jovens que não tinham de esperar pela oposição. Fiz-lhes notar que, por exemplo, muitos destacados membros da UNITA passaram mais de 30 anos nas matas a lutar e, tal como o Sr. presidente, já estão em processo de reforma. Por isso, cabe às novas gerações a formulação de um novo pensamento, criatividade e coragem para assumirmos a responsabilidade comum de forjarmos o futuro de Angola.

Recordei-lhes então o grande hino brasileiro contra a ditadura, o happening: “Vem, vamos embora que esperar não é saber / quem sabe faz a hora, não espera acontecer…”

Excelência,

Quem efectivamente exerce a repressão são as famílias angolanas.O Sr. é apenas aquele que tem um olho em terra de cegos. Por isso, aproveite e goze o poder à vontade, faça e desfaça como melhor sabe. O povo continua burro.

Com admiração, endereço-lhe os meus melhores cumprimentos.
Título, Imagem e Texto: Rafael Marques de Morais, Maka Angola, 22-10-2016

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