sexta-feira, 2 de dezembro de 2016

Na morte de um sedutor

Na televisão, vi gente aparentemente responsável rememorar a “ternura” e a “generosidade” de Fidel, dito “um sedutor”. Não sei se a pulsão erótica despertada por um barbudo com botas e farda desempenha um papel nisto

Alberto Gonçalves

Morreu um ditador brutal que oprimiu o próprio povo. A frase pertence a Donald Trump e, no conteúdo e na dimensão, é o obituário perfeito de Fidel Castro. Infelizmente, é também um caso raro de acerto entre o festim internacional de elogios mais ou menos assumidos ao “líder histórico” e ao “revolucionário”, as expressões que, nos momentos de contenção, muitos utilizaram para classificar um mero psicopata.

É assustador que o senhor Trump tenha demonstrado a lucidez que faltou a quase todos os restantes? Talvez. Mas se nos queremos aterrorizar de facto nem é preciso sair daqui: para um português com dois neurónios ou um pingo de vergonha, o entusiasmo que tantos indígenas exibiram pelo Carniceiro de Havana mostra, com trágica exatidão, o país onde vive e as pessoas que mandam nele.

Evidentemente, não falo dos que, com maior ou menor sinceridade, dedicaram a existência a venerar regimes autocráticos e sanguinários. Não deve espantar ninguém que a menina Catarina do BE lembre o “grande homem” que cometeu “erros” (e não lembre as perseguições a minorias sexuais e religiosas). Ou que Francisco Louçã refira a “liderança popular e marcante” de um “vencedor” (e não refira o destino dos inocentes que derrotou no caminho). Ou que Jerónimo de Sousa consiga, sem se rir, recordar “uma vida consagrada aos ideias da liberdade” (e não recorde os campos de “reeducação” e os fuzilamentos. Nenhuma pessoa civilizada leva tais espécimes a sério, ou espera deles qualquer vestígio de apreço genuíno pela democracia. O pior não é isso.

O pior é ver alegados democratas contorcerem-se todinhos para disfarçarem a devoção que Fidel lhes suscita. O prof. Marcelo, que voou a tempo de conhecer o vulto, é apenas um exemplo. O dr. Sampaio é outro. Na semana passada, o ex-presidente da promissora República assinava um texto contra o populismo. Nesta, desfaz-se em salamaleques ao falecido criminoso: “As pessoas não podiam ignorar a ditadura, mas aquela figura era de uma grande simpatia.” O primitivismo cruel do raciocínio – comparável a notar que “aquilo do Holocausto maçava um bocadinho, mas o Adolfo animava um serão de bisca lambida” – define o dr. Sampaio.

Para nossa desgraça define igualmente as resmas de políticos, diplomatas, comentadores e jornalistas que nos últimos dias babaram nos media considerações suaves acerca de um indivíduo que, para eleborar um pouco a sentença do sr. Trump, matou dezenas de milhares de dissidentes, subjugou durante décadas os sobreviventes à miséria e, no meio de intermináveis discursos alusivos aos méritos do socialismo, lá arranjou maneira de acumular 800 milhões de dólares. Na televisão, vi gente aparentemente responsável rememorar a “ternura” e a “generosidade” de Fidel, dito “um sedutor”.

Não sei se a pulsão erótica despertada por um barbudo com botas e farda desempenha um papel nisto. Sei que é escusado procurar a moral da história. A mora é nula. E a história é a do profundo desprezo das “elites” (ai, ai) caseiras pela liberdade com que enchem a boca. Por azar, as cabeças continuam vazias.
Título e Texto: Alberto Gonçalves, Sábado, 30-11-2016
Digitação: JP

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