segunda-feira, 19 de dezembro de 2016

O monopólio da pós-verdade

Alexandre Homem Cristo

A novidade em Trump não é o alheamento face aos factos, algo que a esquerda há muito adoptou e ele só pratica com maior assertividade. A novidade é que a esquerda perdeu o monopólio da pós-verdade.

Foi a palavra do ano para os Dicionários Oxford. “Pós-verdade”: quando os factos têm menor influência na opinião pública do que os apelos emocionais ou as convicções pessoais. Tudo certo. Excepto a percepção errada de que o problema é novo, nasceu com Trump ou se resume à agora chamada “direita trumpista” (“trumpista” é, depois de “neoliberal”, o novo equivalente retórico a “fascista”). Sim, Trump é nocivo no uso e abuso dos apelos emocionais, em completo alheamento das evidências empíricas. Sim, há todo um amontoado de populismos (de direita mas também de esquerda) entusiasmados com o potencial das redes sociais para disseminar as suas mentiras. Mas não, nada disto é novo ou diferente do que a esquerda europeia (e a portuguesa em destaque) anda a fazer há anos e, em particular, nestes tempos de crise, quando o seu alheamento perante os factos foi a sua característica identitária. E, ainda pior do que acontece hoje com Trump, com a conivência da imprensa e da opinião publicada.

Acha que exagero? Olhe que não. Ainda na semana passada, Joana Mortágua, deputada do Bloco de Esquerda (BE), acusou o governo PSD/CDS (2011-2015), a propósito dos bons resultados no PISA 2015 (a avaliação internacional da OCDE na Educação), de ter excluído os piores alunos da amostra do estudo, atirando-os para o ensino vocacional. E que isso explicaria os bons resultados que Portugal obteve na avaliação internacional. A acusação é muito grave. Mas, como logo denunciei, é também completamente falsa – bastava consultar o relatório em causa para verificar que a representatividade desses alunos até aumentou.

Ora, a leviandade da mentira diz tudo: Joana Mortágua não lançou a acusação recorrendo a evidências empíricas e muito menos se preocupou, ao longo de toda a semana em que insistiu no tema, em verificar a sua veracidade. Bastou-lhe a firme convicção pessoal de que o ex-ministro Nuno Crato tinha uma visão elitista e discriminatória da educação para se justificar. Foi tudo com tal à-vontade que até publicou sobre isso um artigo de opinião no Público, em que expunha a acusação mas (lá está) nenhuma prova da mesma. Felizmente, a coisa atingiu tal dimensão que foi peremptoriamente desmentida por quem coordenou o PISA 2015 em Portugal. Mas se isto não é pós-verdade, é o quê? E de que modo é isto diferente do que se ouve da boca de Trump, que com semelhante leviandade afirma que milhões de votos ilegais foram validados nas eleições presidenciais americanas?

Não há diferença. Sim, o comportamento de Trump eleva a falta de vergonha a um novo nível, mas esse nível está só um degrau acima do que Sócrates instituiu em Portugal e a esquerda abraçou – o desprezo pelos factos, convenientemente substituídos por “narrativas”. Para Joana Mortágua, Nuno Crato foi um elitista destruidor da escola pública e não lhe interessa que os factos desmintam a sua convicção. De resto, nunca é demais lembrar, a deputada do BE não está sozinha: o nosso ar político, entre 2011-2015, foi envenenado de alertas diários sobre a destruição do Serviço Nacional de Saúde ou do sistema educativo. Acusações que, hoje, as avaliações internacionais não só negaram como evidenciaram uma realidade precisamente oposta: onde se alertou para o desastre houve, afinal, melhoria. Mas, naturalmente, isso agora não importa nada.

O problema não é português, entendamo-nos. É europeu e há muito que tomou conta do discurso da esquerda pós-moderna (a começar nas universidades). Ora, agora que teremos de viver com Trump, que pelo menos isso sirva para apontar os holofotes ao elefante que está no meio da sala e poucos aceitam ver: optar por “narrativas”, em detrimento da realidade, tem consequências. Sim, Trump representa bem esse perigo para a qualidade do debate político e das nossas democracias. Mas o que há de novidade em Trump não é a preferência discursiva pelas “narrativas” e pelo alheamento face às evidências empíricas – esse perigo não é novo, pois é algo que a esquerda europeia há muito adoptou e que Trump apenas pratica de modo mais assertivo. O que há de novidade em Trump é que ele não é de esquerda. Só isso. Pela primeira vez, entre os principais actores da política ocidental, a esquerda perdeu o monopólio da pós-verdade.
Título e Texto: Alexandre Homem Cristo, Observador, 19-12-2016

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