Henrique Raposo
As religiões não são diferentes apenas
nos seus momentos históricos. São diferentes nas suas bases morais e
intelectuais. Por exemplo, o cristianismo valoriza o livre arbítrio, o islão
(mesmo o islão tradicional ou moderado) valoriza a submissão.
Após um atentado islamista, o
espaço público é de imediato controlado pelo lero-lero ateu que se julga muito
científico: “todas as religiões são iguais”, “religião é uma fábrica de
fanatismo”, etc.
Perante um ataque concreto de
fanáticos islamitas que emergiram de um caldo religioso concreto (comunidades
muçulmanas a viver na Europa), a ladainha ateia remete o assunto para um termo
vago, “religião”, que pouco ou nada quer dizer. Lamento, mas as religiões não
são todas iguais, nem na teoria, nem nas suas manifestações históricas. Por
exemplo, no nosso momento histórico, não há cruzados, só há jihadistas.
Em 2016, não existe uma única
corrente cristã a legitimar actos terroristas, mas existem diversas correntes
islamitas que legitimam o terror de forma directa ou indirecta. Quando
confrontado com esta evidência, a ladainha ateia sobe uma oitava e atinge o seu
verdadeiro propósito: criticar o cristianismo. Quando dizem “a religião é
sempre uma fábrica de fanáticos” ou “todas as religiões são iguais”, os ateus
não estão a fazer um esforço sério para compreender o islamismo; estão, na
verdade, a usar o islamismo para ressuscitar a velha guerra civil da
modernidade ocidental, a guerra entre ateus e cristãos. Naquelas cabeças, o
muçulmano é uma criança inimputável, uma peça acessória, a roda sobresselente.
Através desta inversão da
lógica, qualquer ataque muçulmano acaba assim num debate sobre a alegada
intolerância cristã. Um facto (violência muçulmana) é escondido atrás de uma
alegação dúbia (a tal intolerância cristã). Esta desonestidade ficou evidente
após o massacre de Orlando. Um fanático islamita acabara de matar dezenas de
gays americanos, mas os pivôs da CNN recusaram colocar a questão dentro do ângulo
islâmico, recusaram ceder àquilo que apelidam de “islamofobia” e insistiram num
slogan que tem tanto de informativo como um anúncio da ILGA: era preciso ver
aquele massacre pelo prisma da “homofobia”, porque há fanáticos homofóbicos em
todas as religiões, a começar no cristianismo americano. Isto é desconversar à
escala de Cecil B. DeMille.
Estamos a falar da mesma CNN
que tem dado uma atenção escassa, para usar um eufemismo, ao grande massacre do
nosso tempo: o genocídio de cristãos em todo o Médio Oriente às mãos de
fanáticos islamitas. A época histórica que regista um genocídio em massa de
cristãos, que tiveram de sair das suas comunidades pela primeira vez em 2000
anos, também é a época que recusa ver o cristão como uma vítima. Esse papel
está reservado para a criança inimputável, o “outro”, o negro, o muçulmano, o
oriental.
As religiões não são
diferentes apenas nos seus momentos históricos. São diferentes nas suas bases
morais e intelectuais. Por exemplo, o cristianismo valoriza o livre arbítrio, o
islão (mesmo o islão tradicional ou moderado) valoriza a submissão. Esta
diferença moral tem por base uma clivagem histórica: no islão não existe tensão
ou dialéctica entre a jurisprudência e teologia. Ao contrário da tradição
narrativa e literária dos livros da Bíblia, o Al-Corão é um código de leis
concretas que alegadamente representa a palavra de Deus ipsis verbis. É um
código civil lavrado nos céus. É total e prescritivo, isto é, prescreve todos
os aspectos privados e públicos, deixando pouco espaço à interpretação
teológica do homem. A Bíblia deixou princípios, o Al-Corão deixou alíneas
jurídicas.
O islão é político e jurídico
desde a fundação, não contemplando a separação entre consciência privada e
presença pública do crente, não aceitando a diferença entre direito positivo da
política e direito natural de Deus. Por outras palavras, a jurisprudência
islâmica é quase uma utopia política que exige uma réplica aqui no mundo
terreno; a teologia cristã cria uma medida justa que serve de modelo moral para
os diferentes regimes políticos que se vão sucedendo na história.
Há dois ou três oceanos entre
uma tradição e a outra. O islão quer fundir Atenas e Jerusalém numa única peça.
O cristianismo aceita e promove a tensão criadora entre Jerusalém e Atenas, entre
o poder político do direito civil e o poder espiritual do direito natural
(ideia universal de justiça). No espaço criado por esta tensão, nasceram
pormenores como o jusnaturalismo dos direitos inalienáveis, o
constitucionalismo e o estado de direito, uma ciência inigualável, uma arte
inigualável e até o ateísmo. Sim, o ateísmo só poderia ter surgido no contexto
da civilização cristã. E, nesse sentido, é uma das provas maiores da grandeza
do cristianismo.
Título e Texto: Henrique Raposo, Rádio Renascença, 6-1-2017
Muito bom!
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