José Milhazes
Ao contrário do que sugere Louçã, na URSS
a violência, a repressão, não começaram com Estaline, mas com Lenine e Trotski.
Se este último tivesse herdado o poder na URSS o sistema não seria menos cruel
No ano em que se assinala o
centenário da revolução comunista de Outubro de 1917, muitas obras serão
publicadas a esse propósito e algumas provocarão acesa discussão, nomeadamente
sobre o papel das principais personagens nesses acontecimentos. A História não
se faz com “ses”, mas permite-nos, se nos basearmos em documentos e fontes
fidedignas, arriscar a desenhar cenários possíveis.
Isto vem a propósito da edição
pelo jornal Expresso do livro “Estaline” do historiador Simon Sebag Montefiore
e do prefácio escrito para ele por Francisco Louçã.
Francisco Louçã assinala que a
biografia de Estaline começa apenas “quando o biografado, já tem 44 anos, está
no auge do seu poder, e por isso só cobre os últimos 21 anos da sua vida”,
deixando de fora importantes momentos. Estou de acordo, pois isso permitiria
também abordar algumas das imprecisões (ou talvez deturpações conscientes)
escritas pelo próprio Dr. Louçã.
Muitas delas estão contidas no
último parágrafo desse prefácio: “A tragédia do século XX é esta: uma revolução
contra uma ditadura e uma guerra, que libertou milhões de servos e prometeu o
fim da exploração, que se anunciou como a alvorada de uma humanidade
cooperante, foi dominada por uma burocracia fechada, temerosa e por isso
agressiva, cujo poder se ergueu sobre uma pirâmide de vítimas”.
Ora, como é sabido, a
revolução comunista não foi feita contra uma ditadura, mas contra uma
democracia pluralista saída da revolução de Fevereiro de 1917. Foi este
pluralismo, por exemplo, que permitiu o regresso de Vladimir Lenine e Lev
Trotski à Rússia e deixou escapar o poder para as mãos dos bolcheviques. Foi
este pluralismo que convocou eleições para a Assembleia Constituinte em 1918,
acto eleitoral livre onde os bolcheviques saíram derrotados e, por isso, não a
deixaram ir além da primeira sessão. As eleições livres e pluralistas seguintes
realizaram-se apenas em 1989, e os comunistas saíram delas fortemente
enfraquecidos.
Quanto à guerra, ainda hoje os
historiadores discutem se foi correcto ou não a Rússia continuar a combater na
Primeira Guerra Mundial e talvez a democracia pluralista tivesse ganho com a
saída do país do conflito, mas os líderes do Governo Provisório que dirigiu a
Rússia entre Fevereiro e Outubro de 1917 tencionavam participar na vitória
sobre a Alemanha, que já não estava muito distante.
Mas, quando se fala da Rússia
nesta guerra, não se pode deixar de assinalar o comportamento do dirigente
bolchevique Vladimir Lenine. Ele não teve pejo de receber dinheiro dos alemães
para realizar o seu objectivo: a derrota da Rússia na guerra, e de ser por eles
transportado numa carruagem selada da Suíça para a Suécia, de onde depois
seguiu para Petrogrado. Cada um que decida se se tratou um acto de “traição
nacional” ou de “maquiavelismo político”.
É estranho ler que foram
libertados “milhões de servos”, pois a servidão foi abolida na Rússia em
Fevereiro de 1861 e, após a revolução de Fevereiro, os habitantes desse país
passaram a ser cidadãos da República com direitos iguais perante a lei.
Quanto à promessa de fim
exploração e ao início da humanidade cooperante, isso não deixou de ser uma
miragem, pintada com cada vez mais sangue pelos bolcheviques. A violência, a
carnificina, a repressão, não começaram com Estaline, mas com Lenine e Trotski.
Se este último tivesse herdado o poder na URSS, nada indica que o sistema seria
menos cruel.
Apenas um exemplo do
“humanismo” de Lénine num telegrama por ele escrito:” Camaradas! O levantamento
dos kulakes [assim os bolcheviques denominavam os camponeses ricos] de cinco distritos
deve levar ao seu implacável esmagamento. Isso é exigido pelo interesse de toda
a revolução, pois agora tem lugar a “última e decisiva guerra” contra os
kulaques. É preciso dar um exemplo.
1) Enforcar (enforcar obrigatoriamente para que o povo veja) um mínimo de conhecidos kulaques, ricaços, vampiros.
2) Publicar os seus nomes.
3) Confiscar-lhes todos os cereais.
4) Fazer reféns, em conformidade com o telegrama ontem enviado.
Fazer com que, num raio de mais de cem milhas, o povo veja, trema, saiba, grita: esganam e esganarão os kulaques vampiros. Telegrafem a informar que receberam e executaram”.
1) Enforcar (enforcar obrigatoriamente para que o povo veja) um mínimo de conhecidos kulaques, ricaços, vampiros.
2) Publicar os seus nomes.
3) Confiscar-lhes todos os cereais.
4) Fazer reféns, em conformidade com o telegrama ontem enviado.
Fazer com que, num raio de mais de cem milhas, o povo veja, trema, saiba, grita: esganam e esganarão os kulaques vampiros. Telegrafem a informar que receberam e executaram”.
O “humanismo” de Trotski ficou
bem presente no esmagamento da revolta de Kronstadt de Março de 1918, a
primeira e última revolta de marinheiros revolucionários, a maior parte deles
descontentes e decepcionados com a nova ditadura comunista que eles tinham
ajudado a chegar ao poder. Os rebeldes exigiam uma série de reformas, entre as
quais a eleição de novos sovietes, a inclusão de partidos socialistas e grupos
anarquistas nos novos sovietes e o fim do monopólio bolchevique no poder, a
liberdade económica para camponeses e operários, a dissolução dos órgãos
burocráticos do governo criados durante a guerra civil e a restauração de
direitos civis da classe trabalhadora.
Em Kazan, no mesmo ano de
1918, Trotski declarava num comício: “Nós apreciamos a ciência, a arte,
queremos tornar a arte, a ciência, todas as escolas, universidades acessíveis a
todo o povo. Mas se os nossos inimigos de classe quiserem mostrar-nos novamente
que tudo isso existe só para eles, diremos: morte ao teatro, à ciência, à
arte”. Levado pelo apoio da multidão, Trotski acrescentou: “Nós, camaradas,
gostamos do Sol, que nos ilumina, mas se os ricos e os violadores quiserem
monopolizar o Sol, diremos: que o Sol se apague e reinem as trevas, a escuridão
eterna”.
O regime comunista foi
construído com base em princípios que apenas podiam conduzir à violência e à
repressão: a não tolerância do pluralismo político no país e o princípio do
“centralismo democrático” no interior do partido. Por isso, todas as
experiências comunistas no século XX terminaram sempre em ditaduras cruéis.
Por isso, importa assinalar
com verdade a revolução de Fevereiro, comparável ao movimento do 25 de Abril de
1974, por ter aberto a via da democracia na Rússia, e analisar, com base em
factos, as consequências do golpe de Estado comunista de Novembro de 1917, para
que não vençam versões “recauchutadas” e “modernizadas” do totalitarismo da
extrema-esquerda.
Título e Texto: José Milhazes, Observador,
13-1-2017
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