quarta-feira, 18 de janeiro de 2017

Vereda para a Terra dos Mortos ou democracia? A escolha!

Reinaldo Azevedo

As sociedades só prendem pessoas, nas democracias, porque uma ideia média do que é o bem comum estabelece um orbital em que podemos transitar

Detalhe de “O Triunfo da Morte”, de Pieter Bruegel

Não existe, sem querer fazer trocadilho tosco, bala de prata nesse caso dos presídios. Não existe “a” ação, “a” determinação, “o” ato. Trata-se de um conjunto de medidas. E é preciso tomar um cuidado extremo, nessas horas, para que não se colham resultados contraproducentes — vale dizer: para que a tentativa de solução não resulte em ainda mais desastre. O governo federal tem caminhado bem até aqui nas medidas paliativas. E não houve tempo ainda para tomar as de outra natureza.

Deixemos claro a questão central, a partir da qual se forma a desesperadora malha de complexidades. Um país em que se matam, por ano, mais de 50 mil pessoas — e é impressionante que isso choque cada vez menos — está fadado a ter presídios que são a sucursal do inferno, dominados por gangues. Ocorre que o sequestro das casas de detenção é só um capítulo do poder crescente do crime, que ocupa hoje vastos territórios nas grandes cidades brasileiras.

Uma resposta a essa questão das cadeias parece, e é, mais urgente do que libertar áreas do país hoje sob a influência do crime. E assim é por uma razão simples: se vocês pensarem bem, os presídios são a expressão máxima da força do estado. Afinal, é ali que os direitos individuais e o habeas corpus são reduzidos à sua mínima expressão em favor do pacto social. Se e quando permitimos que os criminosos se apoderem desses lugares, estamos, na prática, abrindo mão da soberania do estado democrático e rendendo-o, com todo o seu aparato repressivo, aos criminosos.

Sim, é intolerável que chefes de gangues e máfias dominem os morros, as periferias e as áreas pobres das grandes cidades. Isso tem de acabar. É tarefa para ontem. A deformação compromete a qualidade da democracia por definição: afinal, vigoram nessas regiões leis que não emanam do estado brasileiro. A cidadania é aviltada. A individualidade é aviltada.

Mesmo assim, retomar os presídios é tarefa ainda de maior urgência. Atentemos para o simbolismo: naqueles prédios estão concentrados os aspectos repressivos dos três Poderes da República. As sociedades só prendem pessoas, nas democracias, porque uma ideia média do que é o bem comum estabelece um orbital em que podemos transitar. Fora dele, é preciso arcar com as consequências. Nas democracias, pois, por imposição da lógica civilizatória, prisões não podem ser calabouços. E as nossas são.

Oh, meus caros, avancemos ainda um tanto em outras considerações. Os nossos presídios são hediondos. Mas, em regra, os nossos hospitais públicos também. Os nossos presídios são a cloaca do diabo, mas as nossas escolas também. Os nossos presídios transformam em folguedos infantis os relatos os mais apavorantes do homem como lobo do homem, mas não pensam coisa muito diferente aqueles que dão de ombros: “São todos bandidos; que se matem!”. Isso é condescender com o princípio da morte.

Em momentos assim, é preciso que a gente não se deixe levar pelo pessimismo cínico: “Esse país não deu certo! Não adianta! Nada presta”. Os que enveredam por aí costumam se eximir de qualquer responsabilidade, jogando a culpa, confortavelmente, nos ombros alheios. Quem nunca ouviu um interlocutor a censurar “os brasileiros” por isso ou por aquilo? Sim, “brasileiros” são sempre os outros, não é mesmo?

Não estou aqui a socializar as responsabilidades. Se todos são culpados, então ninguém é… Meu ponto é outro. Chegamos a um momento perigoso. A nossa geração — nós, os do presente — experimenta o “turning point”. Para o bem ou para o mal. Ou reunimos os valores e os princípios da democracia para dar uma resposta ao que está em curso, ou o crime se apodera de nacos ainda maiores do estado brasileiro, numa trajetória que pode não ter retorno.

Precisamos, de saída, nos livrar de duas taras intelectuais paralisantes. A de esquerda: não há resposta enquanto não pusermos fim a todas as iniquidades sociais. A de direita: os bons não são obrigados a arcar com o custo da escolha dos maus. As duas concepções são o que o grande poeta Bruno Tolentino chamava de “o mundo como ideia”. Não há vida nesses ambientes. Esse é o reino dos mortos.

Recuperar o controle dos presídios requer recursos. Hoje, eles não existem. Não há gestão possível das contas que possa liberar o necessário para resgatar as fatias que perdemos do Estado de Direito. Recuperar o controle dos presídios requer, e desculpem o termo modernoso e já meio cafona, “ressignificar” o princípio do encarceramento — e não para prender menos, não… Eis outra falácia, à qual ainda voltarei: em boa parte do Brasil, é preciso prender mais.

Encerro assim: o principal risco que corremos hoje é haver, como houve em outras circunstâncias — e não é segredo para ninguém —, uma espécie de acordo tácito entre franjas do estado e as organizações criminosas. Entendimentos feitos ao arrepio da ordem democrática estabeleceriam, assim, a “pax” nos presídios. As gangues deixam de desafiar abertamente o estado, e este, em contrapartida, faz vistas grossas às suas ações ou passa a viver com ele uma espécie de mutualismo.

Por esse caminho, chegamos aonde estamos.

Por esse caminho, chegamos aos 50 mil homicídios.

Foi essa a escolha que nos abriu a vereda para a Terra dos Mortos.
Título, Imagem e Texto: Reinaldo Azevedo, VEJA, 18-1-2017

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