Alberto Gonçalves
A franca sabotagem da comissão de inquérito
prova que a maioria de esquerda abdicou de vez do verniz “institucional” e
assumiu o seu único objetivo: manter o país sob controlo, custe o que custar.
É absurdo pensar-se que o PS
tem uma estratégia concertada para lidar com o “caso” da Caixa Geral de
Depósitos. Que eu reparasse, o PS e os seus porta-vozes oficiais ou informais
vêm exibindo uma riquíssima paleta de estratégias, umas concertadas, outras desconcertantes,
todas atiradas para a arena sem especial ordem de preferência, inteligência ou,
convenhamos, vergonha na cara. Com o rigor possível, consegui catalogar
algumas.
Estratégia A Minha Pátria é
a Banca Portuguesa. Exceto quando se encontra à disposição de
indivíduos devidamente credenciados pela oligarquia, a CGD é uma instituição
sensível que deve ser tratada com consideração e pinças. Perder tempo com
irrelevâncias, mesmo que as irrelevâncias incluam, entre habilidades sortidas,
as intrujices cometidas pelas mais altas figuras do Estado, é matar a Caixa, é
descurar os “enormes desafios que o país enfrenta” (cito um patriota aflito) e
é, vendo bem, um ato de traição.
Estratégia O Respeitinho é
Lindo. É indecente andar-se a julgar o carácter alheio, principalmente
de personalidades que não possuem nenhum. Vilezas assim só se admitem, e até
incentivam, quando o julgado pertence à “direita”.
Estratégia Galo de
Barcelos. Insistir nestas polémicas escusadas dá uma péssima imagem do
lá fora. O que dirá o célebre “estrangeiro”?
Estratégia Amigos Para as
Ocasiões. O que passou, passou. Quem importam os SMS trocados? Que
interessa quem disse e fez o quê? Não queremos construir um futuro comum? De
que vale agora apontar culpas?
Estratégia Ocasiões Para os
Amigos. A culpa é obviamente do dr. Domingues, que reclamou
intoleráveis privilégios – os drs. Centeno, Costa e Marcelo são inocentes em
ambos os sentidos da palavra. Ou a culpa é do dr. Domingues e, em doses assaz
pequeninas, do dr. Centeno, que na sua bondade tolerou sem propriamente tolerar
os tais privilégios – os drs. Costa e Marcelo não sabiam de nada. Ou a culpa é
dos drs. Domingues, Centeno e Marcelo, que afinal cozinharam tudo – o dr.
Costa, coitadinho, sofre em recato a incúria dessa gente. Ou, melhor ainda, a
culpa é da “direita”, porque as leis da física ditam que as responsabilidades
por cada embaraço indígena acabam por cair em cima de Pedro Passos Coelho.
Estratégia O Peso da
Tradição. Admitamos que o ministro, o Presidente da República e, por
mera hipótese académica, o virtuoso primeiro-ministro mentiram. E depois? Os
políticos não costumam mentir? E a “direita”, não mentiu através de
(acrescentar nome), em (acrescentar data), ao dizer que (acrescentar alegada
patranha de que já ninguém se lembra ou dará ao trabalho de verificar)?
Estratégia Recolher
Obrigatório. Este é um caso encerrado.
Estratégia A Vida Continua. Mudemos
de assunto e mostremo-nos chocados e constrangidos pelas revelações inoportunas
que “o Cavaco” (esgar de desprezo) publicou em livro, para cúmulo escrito pelo
próprio (repetir o esgar).
Embora a escolha não seja
fácil, confesso que a minha estratégia favorita é a Send in the Clowns,
na qual o PS lança os maluquinhos disponíveis para emprestar um toque surreal
ao “debate” e adensar o nevoeiro. Um dia, em programa televisivo, o porta-voz
do partido garante que “o PR está profundamente implicado nisto”. No dia
seguinte, indiferente ao vídeo que o desmente ao comprido, garante ter
garantido que “o PR não está implicado em nada”. Pelo meio, o dr. César dos
Açores esclarece que o porta-voz do partido nem sempre é o porta-voz do
partido. E uma senhora chamada Estrela, que em tempos quase se notabilizou por
crer na honradez do eng. Sócrates, junta-se ao circo e adianta em dialeto
evocativo do português: “Domingues foi
útil p conseguir o apoio de Bruxelas à CGD e p isso era necessário ele
acreditar q seu património n iria ao TC. PR colaborou.” Existem cabeças
iluminadas. A da dona Estrela não é uma delas.
Perante isto, há boas e más
notícias. A boa é que, numa democracia civilizada, tamanho desfile de
incompetência, fraude e descaramento terminaria em investigações a sério e,
provavelmente, na morte política dos implicados. A má notícia é que estamos em
Portugal, reino da impunidade seletiva e das clientelas vorazes. A franca
sabotagem da comissão parlamentar de inquérito prova que a maioria de esquerda
abdicou de vez do verniz “institucional” e assumiu, por gestos ou omissões brutais,
o seu único objetivo: manter o país sob controlo, custe o que custar. Na
verdade, não custa muito. Na verdade, custará imenso. Desde o momento em que o
dr. Costa derrubou o tal muro e abriu o regime à barbárie leninista que a nossa
democracia prometia pouco. Hoje promete menos. Pode-se argumentar que o muro
era fraquito e permeável. Mas era um muro.
Notas de rodapé:
Ao contrário dos comentadores
que comentaram o livro de Cavaco Silva duas horas após o lançamento, não sou
versado em “speed reading” ou candomblé. Fico-me, pois, pelos resumos saídos na
imprensa e pela opinião dos prodígios acima. Os primeiros sugerem-me a
excessiva importância que o ex-presidente concede ao eng. Sócrates, além da
previsível constatação de que este é pouco instruído, pouco confiável, pouco
educado e muito deslumbrado consigo mesmo. Já os comentadores, na maioria
viúvas do deslumbrado, juram-me que o prof. Cavaco agiu mal: só se admite que
um político retirado escreva as memórias se o político em causa for de esquerda
e os visados nas memórias não. Assim, trata-se de uma lamentável devassa, um
perturbador (ai) ajuste de contas, um exercício de ressentimento, uma
demonstração de défice institucional, uma insolência em suma – quase tão grande
quanto as cinco vitórias eleitorais de um homem que, garantem as viúvas,
ninguém gosta. Sobretudo por comparação, eu não desgosto.
Título e Texto: Alberto Gonçalves, Observador,
18-2-2017
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