Aparecido Raimundo de Souza
Para
Ana, minha mãe, que ontem saiu do hospital:
TODA VEZ QUE VOU EMBORA PARA CASA, mamãe se doa numa
generosidade de artificiosa. Vagarosamente se põe na varanda e ali fica a me
espiar no ponto. Não se retira enquanto o ônibus não chega e me vê
embarcando. Então se recolhe para o sofá
da sala e volta a se preocupar com o cotidiano da sua existência.
Virou rotina. Chova, faça sol, seja dia claro, tarde ou
noite, lá está ela. Grudada no parapeito da sacada me vigiando, através da
escuridão, como se fosse um anjo. E eu, da rua, sob a marquise do ponto (às
vezes só, pelo adiantado das horas, ou com algumas pessoas), perscruto em
derredor.
Com um olho ora na missa, outro no padre, para não perder de
vista o vulto da minha velhinha querida, no passadiço do prédio, tampouco me
esquecer de controlar a chegada da condução que me deixará na esquina de onde
moro, aceno com as mãos e manda beijos. Mesmo de longe sinto seu sorriso
imperativo e denso de carícias se espalhando no ar.
Esse gesto dela me emociona. Mamãe já passou dos oitenta.
Está velhinha, em meio a um mar de rugas à flor da pele, onde antes
resplandeciam sedas. Caminha meio que encurvada sobre a morosidade inexorável
da estrutura desgastada pelo peso dos anos vividos. A sua vitalidade de mãe,
todavia, não enfraquece. Continua intensa, densa, concreta e inabalável apesar
do corpo cansado.
Interessante, porém, observar, a sua capacidade de saber o
que quer, na hora de tomar uma decisão. E ao fazê-lo, custe o que custar, doa a
quem doer, levará à frente, e na raça, a determinação almejada.
Referencio a preocupação incondicional endereçada a mim. O
filho maior (o mais velho dos quatro), vacinado e fora dos seus domínios
maternos.
Mesmo sendo dono do meu nariz, a ilustre senhorinha, sempre
necessariamente me esbanja o seu amor na melhor forma de maturidade. Não se
importa em deixar de lado o jornal das oito, ou a novela favorita, da qual não
perde um capítulo.
Quando encasqueta fazer alguma coisa, tipo me vigiar, abre
mão de seus programas favoritos, para se posicionar, em circunspecta prontidão,
num cantinho da abada, ao sabor do vento que sopra da praia, olhos e ouvidos
abertos em todas as direções.
Ali fica por longo tempo. É o zelo, a dedicação. O momento
da completude, onde a sua sutileza de mãe, transcende a sua materialidade de
mulher comum. Às vezes, por sorte, o circular vem ligeiro, noutras chega a
demorar mais de quarenta minutos.
Mas isso, contudo, não faz diferença. Ela não arreda pé,
porque é a própria diferença na maneira única de abrir o coração e se mostrar
inteira. Completa, absoluta, como se riscasse com os olhos, em forma de prece,
arabescos incompreensíveis.
Por todas essas coisas, o que me deixa pensativo é o amanhã.
O dia seguinte que ainda não mostrou a cara, mas que chegará, cedo ou tarde,
com seu desfecho recheado de cortes profundos. Atrelado, um enorme leque de
surpresas inesperadas e imprevisíveis se abrirá desembrulhando lembranças.
Tento, porém, não me apegar a essas futilidades maquiadas de
disfarces os mais sombrios, ou me ater na sua essência mais pontiaguda. Entendo
que a realidade, além de instigar, afligir e espicaçar, por mais que almeje
fugir do agora, efetivamente não conseguirei engambelar os fios do meu
emaranhado de pensamentos. Meu Deus... se pudesse obliterar todos os
raciocínios e juízos maus, afugentar o medo que me persegue!...
Em passo contínuo, as reflexões se avolumam, crescem de
tamanho, incham no meu sobressalto mórbido, e explodem. Receios e contratempos bordados de pesares
distorcidos se insurgem, espocam de dentro de meu eu em desespero incontido.
Vão e voltam se embaralham, se enredam, numa velocidade espantosa. Parece que
algo irreconhecível em mim me mapeou a alma de canto a canto, transformando meu
interior em possessão e território.
Tudo porque penso no amanhã. O amanhã! Quando ele chegar,
bem sei mamãe não estará mais naquele mirante tomando conta da minha partida no
vulnerável da avenida.
Nesse dia olharei para o lugar que ela ocupa agora, e lá
deverá estar um vazio inadequado, pesado, denso, fazendo sombra, tomando conta
do nada e atrapalhando a solidez que alimenta a minha base até agora
resistente.
Por certo, a partir daí, perceberei que o pedacinho de chão
que a abrigava, ficou maior, enquanto o meu se perdeu no para sempre. E ao se
perder, deixou presságios intransponíveis, sem condições de apagar da minha
mente qualquer recordação por menor que seja.
Sua ausência se tornará tátil e palpável. Expandirá em
frangalhos, devido à saudade que crescerá nos olhos vazios do meu
silêncio. A partir desse dia, bem sei,
estarei órfão. Não mais ouvirei “obas e olás” à minha chegada. O frenesi das
nossas conversas demoradas, no corredor, cairá por terra, desassociado de
qualquer espécie conhecida de benevolência e benquerença.
E sentirei, também, que verdadeiramente meu anjo bom de luz
intensa não montará mais guarda num plantão voluntário à minha espreita.
Tampouco o seu olhar de brandura perscrutará as ciladas, ou
temerá os assaltos, os oportunistas de último instante, antevendo um ataque
imprevisível à minha integridade.
Estarei acabado. Rés ao chão, abandonado da sua figura única
e desamparado dos seus mimos. Permanecerei carente, desagregado, longe daquele
sorriso matreiro, onde num rápido relance eu conseguia enxergar toda a sua alma
se abrindo em festa.
Como um pupilo escasseado, caminharei ao deus dará, embuçado
na treva, atado a ansiedade que me acompanhava desde o abraço na porta do
elevador até o aceno derradeiro a me ver são e salvo cruzando a roleta a
procura de um acento.
Ah, se eu pudesse parar o tempo! Parar no sentido de
prender, de reter, para sempre, dentro de um cristal esse momento bonito da
mamãe debruçada na visão cálida da noite estrelada. De guardar num lugarzinho
escondido a sua silhueta gentil, mesclada a austeridade do alpendre sem o
colorido da vida.
Se me fosse dada a graça nessa hora, nesse instante, de
perpetuar o seu carinho, ou afastar o hostil das horas - eu roubava mamãe -, eu
roubava a sua beleza singela, e enchia de quimeras o meu peito despedaçado,
destroçado pelo imponderável da cruel solidão. Sem ela, quando ela se for do
meio de nós, TUDO SERÁ SOLIDÃO.
AVISO AOS NAVEGANTES:
PARA LER
E PENSAR, SE O FACEBOOK, CÃO QUE FUMA OU OUTRO SITE QUE REPUBLICA MEUS
TEXTOS, POR QUALQUER MOTIVO QUE SEJA VIEREM A SER RETIRADOS DO AR, OU OS MEUS
ESCRITOS APAGADOS E CENSURADOS PELAS REDES SOCIAIS, O PRESENTE ARTIGO SERÁ
PANFLETADO E DISTRIBUÍDO NAS SINALEIRAS, ALÉM DE INCLUÍ-LO EM MEU PRÓXIMO LIVRO
“LINHAS MALDITAS” VOLUME 3.
Título, Imagens e Texto: Aparecido Raimundo de Souza,
jornalista, de Vila Velha, Espírito Santo, 20-2-2017
Colunas anteriores:
Parabéns pela saída do hospital da sua mãezinha que não é velhinha, mas tem a sabedoria como poucos atingem e consegue ter a lucidez e a dignidade de a ter.
ResponderExcluirVida longa à sua mãe.
José Manuel
José Manuel, obrigado por suas palavras carinhosas endereçadas à minha mãe. De fato, nem todas as pessoas conseguem, hoje em dia, chegar a essa idade com lucidez. É uma luta diária nossa, para que ela tenha melhores dias e consiga (dentro dos desígnios de Deus) viver um pouco mais sem atropelos. Seu fã, Aparecido Raimundo de Souza.
ResponderExcluirCaro Aparecido, és um felizardo pois ainda a tens, ame-a, curta-a, estes momentos são "sem preço". Ficamos felizes em saber que ela está bem, e fora do hospital. Muitas alegrias e saúde é o que desejo a Vcs. Parabéns por ser o filho que és!
ResponderExcluirUm abs,
Heitor Volkart
👏🙏♥
ResponderExcluirLindo e triste ...sei como é perder o nosso chao...a nossa referencia..tive o imenso prazer de conhecer e conviver com essa pessoa maravilhosa que transpirava calma e sabedoria.fica bem Aparecido...
ResponderExcluirPatricia cardoso
ResponderExcluirRegistramos, com sentido pesar, o passamento da senhora mãe do escritor Aparecido Raimundo de Souza, ocorrido ontem, segunda-feira, 12 de fevereiro de 2018.
ResponderExcluirNossas elevadas condolências a Aparecido e familiares.