sexta-feira, 24 de fevereiro de 2017

[Aparecido rasga o verbo] Pentelho

Aparecido Raimundo de Souza

Um.
O sujeito pega o telefone e enquanto liga para o amigo vai se desfazendo dos sapatos e das meias pelo meio do corredor a caminho da cozinha. Fala:

Carlos - “Alô?... Luiz, seu bobalhão, sou eu, o Carlos. Neste exato momento acabei de chegar em casa vindo do prédio onde funciona seu escritório. Toquei a campainha uma porrada de vezes e ninguém atendeu. Sua secretária não veio trabalhar, ou não quis abrir, sei lá. A garota da sala ao lado, de nome Bethânia, chegou às oito horas e dez minutos e, me vendo impaciente, andando para lá e para cá, feito couro de pica, e àquela hora da manhã, ofereceu um copo de água gelada, um cafezinho que fez na hora e, depois, caneta e papel. Não podia simplesmente ir embora ou virar as costas”.

Dois.
Carlos continua, eufórico. - “Achei por bem enfiar por debaixo da sua porta, um bilhetinho simples para você saber que realmente estive lá. O negócio é o seguinte: procurei feito um imbecil o nome que você me passou, ontem, por telefone. Fui em todas as livrarias da cidade (são quase vinte) e não encontrei nenhum livro de Julia Petit.”

“Aliás, Luiz, ninguém conhece Julia Petit por aqui. Liguei para sua casa e consegui falar com a sua filha. Ela confirmou o nome da criatura: realmente Julia Petit, com o tê mudo no final. Argumentei que na pressa, talvez você tivesse me passado o nome errado. Quem sabe, não fosse Julia, mas Rulia, Nulia, Sulia, Vulia, ou qualquer coisa parecida. Sua filha garantiu que era Julia, até soletrou, jota de jaca, u, de uva, ele, de laranja, i de indelicadeza e a de amendoim. Parti, então, para o Petit. Não seria Petite com e, ou Petitte com dois tês? Acho que consegui tirar a sua simpática mocinha do sério. Nas ligações seguintes a jovem só não me chamou de santo, mas percebi, pela alteração da voz, que meu papo estava se tornando chato e incômodo”.

Três.
Carlos segue falando, ininterruptamente: - “Insisti em continuar a conversa, mas ela, com a grosseria e o atropelo que rondam a cabeça da juventude, acabou por me mandar tomar naquele lugar por onde expelimos nossas fezes, ou seja, o cu. Não contente, meu amigo, pá, desligou na minha cara. Fiquei como um abestalhado, a boca aberta, as palavras entrecortadas na garganta, o telefone no ouvido e o troço: tu... tu... tu... tu... tu... tu...”.
“Você sabe muito bem, amigo Luiz, que odeio quando alguém interrompe a ligação, sem mais nem menos, e eu fico boquiaberto, feito um panaca, sem saber o que fazer com o auscultador na mão. Pior é o tu... tu... tu... tu... tu... tu...”.

“Só por vingança Luiz, disquei de novo. Decidi soltar meia dúzia de cobras e lagartos no escutador de novelas daquela patricinha de Beverly Hills, perdão, meu amigo, não por raiva, só para que ela aprendesse a respeitar os mais velhos. Contudo, na primeira tentativa a porcaria deu ocupado e o tu... tu... tu... tu... tu... tu... se fez ouvir logo que terminei de riscar o quarto número. Insisti por mais umas quinze vezes. Todas infrutíferas. Resolvi dar um espaço. Cinco minutos. Findo esse tempo, voltei à carga. Nada! De novo, uma, duas, dez, vinte vezes, Luiz, acredite, vinte vezes e a mer... digo, a porcaria, insistente: tu... tu... tu... tu... tu... tu...”.

Quatro.
Carlos tenta se justificar: - “Com certeza sua filha está de marcação cerrada. Não é possível que ficasse pendurada por tanto tempo, sem dar folga. Bem, pode ser também que tenha deixado o fone fora do gancho, por descuido. Para matar as horas, Luiz, optei por um novo rolé. Tomei um café, comi um pão com manteiga e, após isso, voltei à peleja. Gastei, meu amigo, duas horas e meia refazendo as livrarias. Uma por uma. As respostas das atendentes eram sempre as mesmas. Teve uma que resolveu me encher o saco. Chato quando alguém lhe torra as medidas, não é verdade? Vou tentar reproduzir o diálogo que tivemos”:
Senhor, não temos nenhum livro de Julia Petit, nem de Julia Petite ou similar. Por acaso o senhor saberia dizer qual o nome da obra que ela escreveu? É romance? Livro de autoajuda?  Esotérico? Já procurou em casas que vendem produtos espíritas? O senhor não gostaria de levar o último de Paulo Coelho, ou o recém de Lya Luft?

Obrigado.

Não gosta de Zíbia Gasparetto? Ah! Temos também “Por Que os Homens Fazem Sexo e as Mulheres Fazem Amor”.
E por quê?
Desculpe, ainda não li o livro, mas dizem que é bom. Minha supervisora devorou de cabo a rabo e achou massa.
Massa?
É. Legal!...
Minha filha, você já leu Kafka?
Não senhor.
E Roberto Shinyashiki?
Nunca ouvi falar.
Nem eu. Prefiro Fernando Sabino”.

Cinco.
Carlos segue matraqueando, sem parar: - “Esse foi, Luiz, na íntegra, o bate-papo que trocamos, eu e a vendedora, em uma das livrarias. Para você ver que não estou mentindo, trouxe o nome dela, o número do CPF, identidade, carteira de trabalho e o telefone, caso o amigo queira ligar e confirmar realmente minha presença lá. Mudando de pau para cavaco, uma gracinha, a guria. Maria Helena, o nome da tetéia. Lembra Paula Hunter, filha de Carlos Manga, diretor de núcleo da Rede Globo. Já sei, você não sabe quem é a Paula, nem o Carlos Laranja, desculpe, Manga, Manga. A Paula é a Gilda de “Um Só Coração”. Você está assistindo, não está? Pois é, a Paula é a Gilda”.
“Para terminar, achei por bem colocar por debaixo da porta do seu escritório um bilhetinho com os dizeres: ‘Ligue-me, ligue-me, ligue-me, pelo amor de Deus, ou vou acabar louco. Assinado, seu amigo Carlos’”.                                                
                                                
Final.


Quando Luiz chega em casa, a secretária eletrônica sinalizava que há ligações não atendidas. Aperta o play. Vinte gravações. Todas, sem exceção, do Carlos. Retorna para o amigo chato e literalmente cricri.
Ele não está. A ligação cai na secretária eletrônica. Quando chega o momento de gravar, Luiz deixa uma mensagem. Ou pelo menos tenta. Começa:
Luiz - “Carlos, sou eu, atenda essa merda de telefone. Caralho! Eu sei que está ai. Recebi seus recados. Vinte ao todo. Não precisava ligar tantas vezes, mané. Achei seu bilhete... pi... pi... pi... pi... pi... pi... Julia Petit... pi... pi... pi... pi... pi... pi... é... Ju... pi... pi... pi... pi... pi... pi... Julia. Escreve-se... Jota... u... ele... i... a... -... p... pi... pi... pi... pi... pi... - e Petit se soletra pi... pi... pi... pi... pi... pi... Pe... e... te... i... te. O te é mudo, o te é mudo no final... pi... pi... pi... pi... pi... pi... Julia... pi... pi... pi... pi... pi... pi... Petit, seu Zé babaca, pi... pi... pi... pi... pi... pi... é pro... pi... du... pi... pi... to... pi... pi... pi... ra... pi... pi... pi... pi... mu... pi... pi... pi... pi... pi... si... cal... pi... pi... pi... pi... pi... pi... não... pi... pi... pi... pi... pi... pi... é... pi... pi... pi... pi... pi... pi... es... pi... pi... pi... pi... pi... pi... cri... pi... pi... pi... pi... pi... pi... to... pi... pi... pi... pi... pi... pi... ra...

A secretária eletrônica de Carlos, contudo, parece estar com problemas. Segue emitindo aqueles pi...pi...pi... intermitentes e irritantes. Todavia, Luiz prossegue, sem perder a calma.
“Ela pi... pi... pi... pi... pi... pi... está... pi... pi... pi... pi... pi... pi... na lis... pi... pi... pi... pi... pi... pi... ta... pi... pi... pi... pi... pi... pi... dos... pi... pi... pi... pi... pi... pi... mais... pi... pi... pi... pi... pi... pi... bem  pi... pi... pi... pi... pi... pi... vesti... pi... pi... pi... pi... pi... pi... dos... pi... pi... pi... não... pi...  dos... pi...  mais... pi...  bem... pi...  vendi... pi... pi... pi... pi... pi... pi... dos... pi... pi... pi... pi... pi... eu disse... pi... pi... pi... pi... pi... pi...  vesti... pi... pi... pi... pi... pi... pi... dos... pi... pi... pi... pi... pi... pi... não... pi... pi... pi... pi... pi... pi...  vendidos.

Em meio a tantos pi...pi...pi... Luiz finalmente se aborrece e perde a calma. Agora já não fala, berra. E então, explode, furioso, colérico, fora de si:

Luiz - “E... por fa... pi... pi... pi... pi... pi... pi... vor... pi... pi... pi... pi... pi... pi... não... pi... pi... pi... pi... pi... pi... me... pi... pi... pi... pi... pi... pi... tor... pi... pi... pi... pi... pi... pi... re... pi... pi... pi... pi... pi... pi... tan... pi... pi... pi... pi... pi... pi... to... pi... pi... pi... pi... pi... pi... a por pi... pi... pi... pi... pi... pi... ra... pi... pi... pi... pi... pi... pi... do... pi... pi... pi... pi... pi... pi... sa... pi... pi... pi... pi... pi... pi... co... pi... pi... pi... pi... pi... pi... Vá... pi... pi... pi... pi... pi... pi... para... a... pi... pi... pi... pi... pi... pi... a... pi... pi... pi... pi... pi... pi... puta... pi... pi... pi... pi... pi... pi... que... Pa... Piiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiii!...”.

AVISO AOS NAVEGANTES:
PARA LER E PENSAR, SE O FACEBOOK, CÃO QUE FUMA OU OUTRO SITE QUE REPUBLICA MEUS TEXTOS, POR QUALQUER MOTIVO QUE SEJA VIEREM A SER RETIRADOS DO AR, OU OS MEUS ESCRITOS APAGADOS E CENSURADOS PELAS REDES SOCIAIS, O PRESENTE ARTIGO SERÁ PANFLETADO E DISTRIBUÍDO NAS SINALEIRAS, ALÉM DE INCLUÍ-LO EM MEU PRÓXIMO LIVRO “LINHAS MALDITAS” VOLUME 3.
Título e texto: Aparecido Raimundo de Souza, jornalista. Do Sítio ”Shangri-La” – Um lugar perdido no meio do nada. 24-2-2017

Colunas anteriores:

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Não publicamos comentários de anônimos/desconhecidos.

Por favor, se optar por "Anônimo", escreva o seu nome no final do comentário.

Não use CAIXA ALTA, (Não grite!), isto é, não escreva tudo em maiúsculas, escreva normalmente. Obrigado pela sua participação!
Volte sempre!
Abraços./-