Rui Ramos
O défice de 2016 não é dos mais baixos da
Europa, mas a taxa de crescimento é das mais baixas do mundo. A sua celebração
revela a redução das expectativas num país conformado com a sua decadência
Há uma semana que o governo e
o presidente da república parecem muito admirados por o país não ter aberto o
champanhe com o défice orçamental de 2016 (2,1% do PIB). Então o governo
serve-nos o “défice mais baixo da democracia”, e ninguém manda sequer
cumprimentos? Excesso de facciosismo das oposições? Mas não são só o PSD e o
CDS que não festejam. O PCP e o BE também não. E o próprio governo, na
quarta-feira, esqueceu a proeza, e preferiu fazer espetáculo com a saída de
capitais entre 2011 e 2014. Que se passa?
No fundo, toda a gente sabe
que os défices são como os chapéus de Vasco Santana: há muitos. O défice que
temos é um exercício de ajustamento temporário, negociado com a Comissão
Europeia para salvar as aparências estatísticas e garantir o financiamento do
BCE. No contexto europeu, não parece tão magnífico: até pode ser um dos mais
baixos da democracia portuguesa, mas não é dos mais baixos da Europa. Do ponto
de vista da história recente, também não deixa sonhar alto: porque este não é o
primeiro “défice mais baixo da democracia”. Já tivemos um, em 2008, quando nos
anunciaram que o défice de 2007 tinha ficado em 2,6% do PIB. A miragem não
durou. Em 2010, o défice mais baixo da democracia já estava transformado num
dos seus défices mais altos (11,2%). Em 2011, como estocada final, o Eurostat
reviu as contas, e descobriu que o défice de 2007 fora, afinal, de 3,1%. Eis o
que acontece aos défices quando a contabilidade é vaga, as políticas não são as
melhores, e a economia não cresce o necessário.
Vai a história ser diferente
desta vez? Já não há Ota nem TGV. Mas a despesa pública permanece acima de
todos os anos anteriores a 2008, com um peso excessivo para o nosso nível de
desenvolvimento e para a qualidade dos serviços públicos. O défice só não é
maior por um esforço contributivo igualmente desproporcionado, compensado até
agora nos orçamentos domésticos da classe média pela queda dos juros e do preço
do petróleo. Entretanto, a economia portuguesa é aquele tema sobre o qual as
entidades internacionais se repetem: de seis em seis meses, temos o mesmo
diagnóstico (baixa produtividade, reduzido potencial de crescimento, tendência
para os desequilíbrios externos, etc.), e a mesma receita de “reformas” que,
com a atual maioria, estão fora de questão. A dívida pública, que é a
verdadeira medida de todas as coisas em Portugal, continua em expansão, sempre
com a notação de lixo e com custos cada vez mais altos.
Temos o hábito de dizer estas
coisas como se fosse a primeira vez, mas ouvimos isto há muitos anos. O que é
novo, então? O que é novo é o governo ter pensado que podia festejar o défice
de 2016 ou ainda a taxa de crescimento do PIB (1,4%), das mais baixas do mundo
e até inferior à da época da “destruição da economia” (1,6% em 2015). Só isso
revela a imensa redução das expectativas em Portugal. E o facto de ninguém,
tirando o presidente da república, ter festejado fora do ministério das
finanças, sugere por outro lado que muita gente já percebeu que esses números
servem para ir levantar dinheiro ao BCE, mas nada mais. Basta uma pergunta:
quem pensa ainda seriamente no velho objetivo de convergência com a Europa, que
tanto excitava as elites caseiras na década de 1990?
É duvidoso que o país, depois
de 15 anos de austeridade intermitente, esteja iludido. Mais provavelmente,
estará cínico: não vendo alternativa, aproveita a folga, à custa da taxa de
poupança. Sobre a oligarquia política, é que não pode haver dúvidas de que não
tem mesmo ilusões: limita-se, um dia de cada vez, a defender o acesso ao BCE, e
a zelar pelas suas clientelas. Incomoda-se muito com os paraísos fiscais dos
outros, mas lá vai promovendo o seu próprio paraíso fiscal, para benefício dos
estrangeiros. O governo e o presidente que nos desculpem, mas tudo isto, por
mais que se arraste, há de parecer sempre o fim da festa, e não o seu começo.
Título e Texto: Rui Ramos, Observador,
24-2-2017
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