Aparecido Raimundo de Souza
“O marido reclamava tanto da mulher que
ela, certa noite, enfurecida, resolveu prendê-lo no canil dos cachorros.
Quando, manhã seguinte, se lembrou de tirá-lo do castigo, ele havia fugido com
a cadela da vizinha”.
Basfulú Rufino (Citado em “Tudo o que
eu gostaria de ter dito”, página 116, Celeiro de escritores - São Paulo - 2010)
Sempre que o Leporace se sentava para
tomar o dejejum matinal, a reclamação era a mesma.
- Diabo, Lindinha. Posso contar nos
dedos as vezes em que eu vim tomar café que essa porcaria de garrafa não
estivesse com o café no ponto. Pombas, você não aprende...
Lindinha, a esposa, eternamente
solícita, vinha em socorro do seu marido com um sorriso largo no rosto
entristecido.
- Lepo, meu amor, acabei de coar...
Leporace (ou Lepo, como carinhosamente
Lindinha o tratava), nervoso e com cara de poucos amigos, enregelado como uma
lâmina de forca rebatia:
- Confira você mesma.
- Vai ver “foi as crianças”. Sabe como
é. Apressadinhas...
- Não me interessa. O café está uma
merda.
Pacientemente a mulher derramava todo o
conteúdo numa vasilha e voltava com ele ao fogão. Quando retornava Leporace
continuava falando pelos cotovelos.
- Agora ficou pior...
- Como pior, amor?
- Gosto de requentado. Pra mim chega.
Vou embora que o dia promete ser longo. Beba você essa água de batata.
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Assim se sucedia todos os dias, o ano
inteiro. À hora do café Leporace voltava à carga com a pobre da Lindinha, e o
café que, segundo ele, andava pra lá de gelado, ora frio, ora morno, ora
insosso e sem açúcar. Por mais que Lindinha se esforçasse, nunca acertava os
ponteiros com o chato de galochas do homem amado.
A coitada acordava às cinco. Ia à
padaria, passava o café, arrumava a mesa, preparava o lanche dos três filhos
para a escola e, às sete horas em ponto, depois de uma correria danada,
Lilinha, Simoni e Eduardo se viam no portão da casa enorme à espera da Van que
os levaria para a escola. Despachada as crianças, voltava às carreiras para
cuidar do mal-acabado do turrão que sairia às oito para a prefeitura, onde
exercia a profissão de motorista de um dos caminhões de lixo.
- Estou atrasado, hoje...
-
Lepo, meu amor, a mesa está posta, à sua espera.
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Novamente, ao se acomodar, o impaciente
e intrépido mal-agradecido vociferava da bebida fora dos padrões normais.
- De novo para o trabalho sem me
alimentar adequadamente. Droga... droga... droga!
Alguns dias à frente Lindinha careceu
de sair. Após se livrar das crianças, da calçada mesmo se mandou para a
pracinha onde pegaria a condução. Leporace pulou da cama, tomou banho, se
vestiu e, como normal, ao entrar na sala encontrou a mesa do café pronta, com
tudo a tempo e a hora. Chamou pela companheira, mas lembrou, na noite anterior
-, ela avisara que estaria ausente em vista de precisar realizar uma consulta
com seu ginecologista. Leporace passou manteiga no pão, cortou o queijo, se
serviu de uma fatia de mortadela, pegou o leite. Até aí sem queixa ou protesto,
até porque todos os cômodos estavam vazios.
- Droga! Que droga!
Ao se servir do líquido precioso, o estrondo
inesperado não se fez esperar.
- Garrafa dos infernos. Essa água rala
parece mais com mijo de velha.
Nessa hora, aconteceu então o
inesperado imprevisto. Uma voz rouca e braba encheu todo o ambiente:
“Escuta aqui, seu filho de uma égua
desmamada...”.
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Leporace tomou um susto tremendo.
Derrubou a cadeira onde se sentara. Desconfiado, perscrutou para todos os
lados.
- Quem está falando? Quem é? Apareça...
“Estou aqui desgranhento. Sou eu quem
fala contigo. Passa a mão nessa cadeira, e senta a bunda aí e me escuta. Olhe
para mim. Quero levar um tête à tête com o ilustre cavalheiro.
Leporace espavorido e atemorizado,
tremendo mais que vara de caniço em temporal, espiou de novo em todas as
direções. Nada. Não viu viva alma.
A voz macabra insistiu:
“Senta aí excomungado. Não vou pedir de
novo”.
Deu de frente, finalmente, com a velha
garrafa de café, no centro da mesa, olhando para ele, enfezada, zangada,
furiosa, pê da vida.
“Sou eu mesma. A sua garrafa de café.
Senta esse rabo magro ou despejarei essa panela de leite nos seus cornos”.
- Que brincadeira é essa? – “Tá me
tirano”?
A garrafa deu umas mexidas estranhas,
como se dançasse ao som de uma música infernal. Esse novo contratempo perturbou mais um bocado os ânimos austeros
e abespinhados da criatura.
“Senta seu monte de bosta”.
Leporace, completamente estatelado, se
acomodou assombrado, confuso, o coração acelerado, como se quisesse saltar pela
boca.
“Agora me escute. Olhe para mim...”.
- Você?
Você fala? Meu Deus! Enlouqueci. Estou batendo boca com uma garrafa de
café. Kikikiki.
“Pare de rir imbecil. Agora diga sim
senhora”.
- Eu dizer para uma garrafa sim
senhora? “Qualé a sua?”. Vá ver se estou
lá na esquina.
“Me alcance o cabresto. Se você estiver
lá, lhe trago amarrado a minha raiva”.
- De que cabresto falamos?
A resposta não se fez esperar. A
leiteira, como se estivesse sendo movida por uma mão invisível, saiu do seu
marasmo e voou em direção a Leporace derramando todo o conteúdo em sua cabeça.
Mesmo instante, o pote de manteiga deu uma pirueta se alojando em seu nariz,
sujando toda a sua cara esbugalhada com o produto gorduroso.
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- Mas o que é isso? Que brincadeira
mais sem graça? Olha como ficou meu uniforme... eu vou...
“Leporace seu imbecil de uma figa. Você
não vai coisíssima nenhuma. Fica na sua. Abaixa a sua bola. Caso contrário,
providenciarei para que essa mesa caia sobre seus costados. Agora me escuta,
seu verme. Repita comigo. Sim senhora”.
- Sim senhora.
“De novo. Sim senhora”.
- Sim senhora...
“Bom menino. Assim é que gosto de ver.
Guarda bem o que direi seu vagabundo. A partir de hoje não quero mais ver ou
ouvir o senhor dar um pio em relação ao café que a Lindinha prepara com todo
esmero e dedicação e lhe serve nessa mesa. Aliás, em relação a mais nada. Vamos
botar um ponto final a partir de agora. De contrapeso, apelo para seu bom
senso. Se ouvir mais um protesto, um tantinho assim que seja lhe aplicarei um
castigo do qual jamais se esquecerá.
6
A toalha inopinadamente se elevou da
mesa, deu um safanão e se estatelou no chão derrubando tudo o que estava sob
ela.
“Entendeu meu recadinho, seu covarde?”
- Si... sim...
“Então diga sim senhora, entendi
perfeitamente bem. Fale... solte a língua”.
- Sim senhora. Entendi.
“Não ouvi. Repita”.
- Sim senhora. Entendi.
“Saiba que sua consorte, a Lindinha não
é sua escrava. Ela levanta cedo, cuida de todos os afazeres, como uma boa e
prestimosa dona de casa, e não dá um pio. Aturar três crianças e mais um
canalha da sua laia é o “olho do borogodó”. Portanto, seu veado chifrudo, a
partir de hoje, se eu escutar, ou melhor, se eu sonhar ter ouvido um protesto,
uma empombação, zanga ou exigência tenha a certeza de que o senhor nunca mais
se esquecerá de mim. Estamos entendidos?
- Esta... esta... esta... mos... en...
“Pare de gaguejar seu filho de um
jumento. Você não é homem para ficar se exibindo?”
- Sou...
“Então repita. Estamos entendidos”.
- Es... esta... estamos entendidos.
“Não ouvi. De novo”.
- Esta... estamos entendi...
entendidos...
“De novo”.
- Estamos entendidos.
“Mais alto, mais alto”.
- Estamos entendidos.
“Grite. Estamos entendidos”.
Leporace mal acabou de berrar, a
garrafa de café se destampou sozinha e mergulhou, certeira, sobre a cabeça do
abestalhado, despejando sobre seus cabelos todo o restante do café acondicionado
em seu interior.
***
Final:
Sonho, ilusão, visão, não importa.
Desse dia em diante, nunca mais se ouviu uma contradita saída da boca de
Leporace com relação ao café que Lindinha lhe preparava. A bem da verdade, o
cidadão se transformou da água para o vinho. Ficou como dizem, “pianinho”,
passando, inclusive, a ajudar a cara-metade nos pequenos afazeres domésticos
antes de sair definitivamente para o batente. Lindinha percebeu e aprovou essa
mudança. Todavia, nunca compreendeu os motivos que levaram seu querido Lepinho
a se tornar, da noite para o dia, numa pessoa exemplar, meiga e atenciosa. E o
mais espetacular: com uma educação refinadíssima e acima de qualquer suspeita.
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PANFLETADO E DISTRIBUÍDO NAS SINALEIRAS, ALÉM DE INCLUÍ-LO EM MEU PRÓXIMO LIVRO
“LINHAS MALDITAS” VOLUME 3.
Título e
texto: Aparecido Raimundo de Souza, jornalista. Do
Sítio ”Shangri-La” – Um lugar perdido no meio do nada. 13-3-2017
Colunas anteriores:
Com certeza muitas mulheres desejam possuir uma garrafa termica dessa em suas casas. Otima aliada contra o machismo desmedido de certos individuos totalmente sem nocao. Parabens ao autor.
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