Vitor Grando
O islamismo é uma das maiores
religiões do mundo, com mais de um bilhão e meio de adeptos e, ao mesmo tempo,
é a que mais cresce, ao passo que o cristianismo tem suas raízes arrancadas
progressivamente da Europa em razão dos fortes ventos do secularismo. Todavia,
o islamismo ainda é completamente desconhecido por parte do mundo ocidental,
levando-nos a uma grande incompreensão das razões, práticas e crenças de uma fé
que, ao menos desde 2001, ocupa diuturnamente as manchetes dos jornais.
Sendo assim, urge,
principalmente por parte de teólogos e cientistas da religião, a publicação de
obras sobre o pensamento árabe, bem como a tradução dos seus principais
expoentes, já que nisso ainda somos completamente incipientes no Brasil. Aquele
que é provavelmente o maior dos teólogos árabes – al-Ghazālī – permanece
largamente desconhecido no Brasil e sem que muitas de suas importantes obras
tenham sido traduzidas. Al-Ghazālī talvez seja mais conhecido no âmbito da
filosofia da religião como o desenvolvedor do chamado Argumento Cosmológico
Kalam, popularizado por William L. Craig. No entanto, o teólogo árabe merece
ter sua obra difundida pelos seus próprios méritos.
Abū Ḥāmid Muḥammad ibn Muḥammad
al-Ghazālī (1058-1111) é, depois do Profeta Maomé, a personalidade mais
influente do pensamento teológico muçulmano. Não à toa é aclamado pelo
islamismo sunita com o título exclusivo de “A Prova do Islã” (Hujjat al-Islam)
por causa de sua vigorosa luta em defesa da ortodoxia islâmica. À época em que
viveu, duas tradições de pensamento rivais disputavam a inteligência árabe: o
kalām e a falsafa. Kalām (discurso, no árabe) é o termo que denominava a
teologia especulativa, já falsafa era o termo árabe para a filosofia. Com
completo domínio tanto do kalām quanto da falsafa (algo talvez inédito até sua
época), ele marcou o pensamento árabe de modo indelével, tornando-se até hoje o
maior dos teólogos do mundo árabe.
Neste livro, o autor Eric
Ormsby, especialista em teologia e filosofia islâmica e atualmente diretor do
Istitute of Ismaili Studies em Londres, pretende nos transmitir o essencial da
vida e da obra de “um gênio religioso pouco conhecido para além do mundo
especializado”. Segundo Ormsby, “Ghazālī merece estar entre as grandes figuras
da história intelectual, digno de ser posto ao lado de Agostinho e Maimônides,
Pascal e Kierkegaard” (p. ix).
Na língua inglesa, há
trabalhos mais elaborados sobre o pensamento e a vida de Ghazālī, dentre os
quais se destacam Al-Ghazali’s Philosophical Theology de Frank Griffel e os
trabalhos de Michael Mamura e W. Montgomery Watt. No entanto, Ormsby se propõe
a escrever para aqueles que pouco conhecimento prévio têm tanto do pensamento
de Ghazālī como do pensamento árabe, o que torna este livro uma obra singular
para incipientes estudos da teologia árabe, justamente aquilo do qual carecemos
no Brasil.
O livro é divido em seis
capítulos além da introdução e conclusão. Já na introdução temos um resumo
geral do pensamento de al-Ghazālī, a ser mais bem explicado nos capítulos
subsequentes. O livro é bem estruturado em torno dos principais eventos da vida
do teólogo árabe. Desde suas raízes na cidade de Tus, Irã, ao seu retorno à
atividade magisterial após uma década de reclusão na prática do misticismo
sufi, período que serviu de verdadeiro turning point na sua epistemologia e
resultou numa compreensão bastante peculiar da compreensão entre a teologia
islâmica e as ciências seculares.
Além da relevância do teólogo
árabe para a compreensão da teologia islâmica, o que torna a contribuição do árabe
singular para a filosofia da religião são, em primeiro lugar, seus
interessantes insights sobre a relação entre a teologia e a filosofia, e em
segundo lugar a maneira como sua experiência mística marca sua compreensão da
epistemologia da religião.
Al-Ghazālī era ligado à escola
asharita de teologia, fundada por Abu al-Hasan Al-Ash’ari, que surgiu em parte
como resposta a algumas das ideias da então predominante escola mu’tazilita.
Al-Ghazālī já era um renomado jurista e teólogo quando enfrentou um período de
profundo ceticismo que marcou irreversivelmente sua teoria e prática. Em julho
de 1095 d.C., o excesso de racionalismo e a ênfase na autonomia da razão típica
do mu’tazilitasmo levaram al-Ghazālī a uma profunda crise de ceticismo. Em sua
autobiografia A Libertação do Erro (al-Munqidh min al-Ḍalāl), ele descreve um
processo de questionamento de suas certezas, similar ao que viria a ser
descrito por Descartes em O Discurso do Método.
Na sua busca por certeza, ele
não mais podia acreditar em seus sentidos. Afinal, se os sentidos lhe mostravam
o sol do tamanho de uma moeda, as observações cosmológicas mostravam que o sol
era muito maior do que a Terra. Nós observamos a sombra causada pelo sol como
estática, mas posteriormente percebemos que ela vem se movendo de modo quase
imperceptível. Como, portanto, confiar nos sentidos se, nesses casos, a razão
mostra que eles estão errados? Mas se a razão é capaz de demonstrar que nossos
sentidos não são confiáveis, o que nos garante que não haja uma fonte de conhecimento
superior à razão que venha a mostrar que ela também está errada? Segundo Ormsby
nos conta, tal processo foi muito mais do que uma mera metodologia filosófica,
foi um processo integral que lhe gerou uma profunda crise de modo a afetar até
mesmo a sua saúde física, em especial a sua fala, até que Deus o curou de tal
enfermidade restaurando-lhe a saúde, a sanidade e a aceitação dos dados
autoevidentes da razão, mas al-Ghazālī frisa, isso não foi alcançado por meio
de provas ou argumentos, e sim pelo resultado da luz divina infundida em seu
coração.
Essa experiência foi central
na vida de al-Ghazālī, como explica Ormsby: “Sua crise não foi causada pela
dúvida que o havia atormentado enquanto jovem, mas por algo ainda mais
devastador: ele havia descoberto a verdade, mas não conseguia agir de acordo
com ela. Ele havia sido paralisado pela verdade” (p. 1). Foi essa experiência
que o levou ao misticismo sufi e à crença nas limitações da racionalidade
humana crendo, portanto, que a verdade última – ou a “certeza” - só poderia ser
alcançada mediante a experiência direta (expressa pelo termo árabe dhawq). Essa
guinada em sua epistemologia foi central ao seu desenvolvimento intelectual
posterior.
Essa experiência foi
fundamental na vida de al-Ghazālī, bem como em toda a tradição teológica
islâmica posterior, tendo em vista a influência que al-Ghazālī teve e ainda tem
por intermédio de seus escritos. Como vemos no terceiro capítulo, os
mu’tazilitas, da escola teológica ainda bastante influente na época de al-Ghazālī,
defendiam enfaticamente algumas doutrinas que viriam a ser questionadas e
acusadas de heresia por al-Ghazālī: a Qadariyah (livre-arbítrio) e o excesso de
racionalismo e suas consequências nefastas para a teologia. A própria razão
levara al-Ghazālī a concluir que o intelecto não poderia ser o árbitro final da
verdade, a qual só poderia ser alcançada pela experiência. Embora ele fosse um
teólogo, era perfeitamente consciente dos limites da teologia, à diferença dos
mu’tazilitas. Ele tanto exaltava a ciência teológica como reconhecia seus
limites, muito em razão de sua experiência pessoal de desilusão com a
indolência dos teólogos, em especial os mu’tazilitas. Observando que a fé
baseada nas provas do Kalām tendia a ser instável e suscetível ao colapso, ele
buscou limitar a prática teológica àqueles cujo coração tinha desenvolvido
dúvidas incapazes de serem respondidas pelas homilias religiosas simples e
àqueles de inteligência superior, cuja convicção havia sido reforçada pela “luz
da certeza” e pretendiam auxiliar aqueles que estavam na dúvida.
Basicamente as mesmas razões o
levaram às suas ressalvas em relação à falsafa, pondo em xeque a confiança
crédula numa suposta autonomia da razão por parte dos falasifas (filósofos, em
árabe) e sua adesão ingênua a todo discurso dos filósofos gregos, o que os
levava a doutrinas consideradas, por al-Ghazālī, heréticas, bem como levava
parte deles à infidelidade – a negação da ressurreição do corpo, a criação do
mundo e o conhecimento de Deus dos particulares. A acusação de infidelidade
(kufr) era muito mais grave do que a mera heresia, já que a punição para a
infidelidade era pena capital no Islã.
Embora seus ataques aos
falasifas – em especial à filosofia de ibn Sīnā (Avicenna) - tivessem origem em
sua vontade de defender o Islã, suas críticas não tomavam por base suas crenças
religiosas, mas ele os enfrentou usando as próprias ferramentas da falsafa,
mostrando que, além de heréticas, suas doutrinas não se sustentavam nem mesmo
pelos seus próprios métodos. Nisso al-Ghazālī foi pioneiro, trazendo para
dentro do pensamento teológico árabe as ferramentas filosóficas em que ele via
valor, mas eliminando suas conclusões questionáveis do ponto de vista do Islã
e, assim, “purificou” a filosofia para os seus próprios propósitos e para
aqueles dos teólogos posteriores.
O interesse na abordagem de
al-Ghazālī em sua crítica aos filósofos, como Ormsby bem frisa, é que seus
ataques não se direcionavam tão somente às heresias que eles defendiam, como se
fosse o ataque de um crente aos filósofos. Na verdade, pode-se dizer que
al-Ghazālī os atacava em defesa da razão. Era ele um cético atacando a
credulidade insipiente (taqlid) dos filósofos a quem ele acusava de conformismo
irrefletido. A mesma tendência crédula dos crentes leigos surgia nos filósofos
em relação aos predecessores da filosofia grega. Tais filósofos eram
considerados infiéis, segundo al-Ghazālī, sem qualquer fundamento racional para
a sua descrença, a não ser a imitação convencional de nomes que lhes causavam profunda
impressão pomposa, como Sócrates, Hipócrates, Platão e Aristóteles, com a
diferença de que a imitação crédula dos crentes seria ao menos “imitação do que
é verdadeiro” ao passo que a dos filósofos seria “imitação do que é falso”.
Uma das suas críticas mais
importantes aos falasifa era relacionada à sua noção de causalidade. Eles
afirmavam haver uma relação necessária entre causa e efeito, o que
inviabilizaria a possibilidade de milagres, por implicarem o rompimento com a
ordem natural e necessária das coisas. Al-Ghazālī defendia a controversa teoria
do ocasionalismo, segundo a qual se entende causa e efeito não como
consequência necessária entre uma e outra, mas como duas ações produzidas
concomitantemente pela vontade de Deus. Seu mais famoso exemplo é o do fogo e o
algodão. A queima produzida pelo contato de uma chama e o algodão não é
inevitável ou necessária. Os filósofos afirmavam que o fogo seria o agente
causador da queima. Al-Ghazālī negava relação de causalidade entre os dois
eventos e afirmava que a queima era produzida não pelo contato da chama com o
algodão, mas sim pela ação divina direta. O fundamento da crença na relação de
causalidade era, portanto, não a natureza das coisas, mas sim o hábito
pregresso de Deus que nos permite inferir que a chama queimará o algodão,
embora al-Ghazālī negasse enfaticamente qualquer agente a não ser Deus e
qualquer relação necessária entre causa e efeito.
Al-Ghazālī tem como grande
mérito unir a ortodoxia islâmica ao misticismo sufi, já que foi por intermédio
deste que ele teve sua experiência mística onde a luz de Deus lhe renovou a
confiança na razão sendo, portanto, a certeza adquirida somente mediante a
experiência direta e não pelas provas do Kalām nem pelo raciocínio da falsafa.
A diferença entre o método do kalām e da falsafa e o método experiencial é para
ele a mesma entre conhecer as definições, causas e condições da saúde e estar
saudável; ou entre conhecer a definição de embriaguez e estar bêbado. Talvez,
nesse sentido, pode-se dizer que al-Ghazālī antecipou a crítica ao
evidencialismo em epistemologia da religião feita pelos representantes da
epistemologia reformada. Tal como Plantinga, para al-Ghazālī a racionalidade da
crença em Deus prescinde da teologia natural e pode ser sustentada por si mesma,
ou seja, de forma básica. Aliás, não só a crença em Deus prescinde da teologia
natural, como é a própria crença em Deus o fundamento da confiança na razão.
O livro de Ormsby é certamente
uma introdução excelente e de fácil leitura ao leitor ocidental, por não nos
exigir qualquer conhecimento prévio do pensamento árabe, e justamente por essa
razão carece de uma tradução para a língua portuguesa. Até lá, devem os
estudiosos amiúde recorrer a outras línguas para conhecer o pensamento deste
autor tão relevante.
Título e Texto: Vitor Grando, Mestrando em Lógica e
Metafísica – UFRJ, Revista Brasileira de Filosofia da Religião, dezembro de 2016
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