Helena Garrido
Somos nós que validamos as escolhas dos
governos. É por nossa culpa que estamos a suportar a crise dos bancos. E é
culpa nossa acreditar que limitar o aumento das rendas resolve problemas na
habitação
A economia é por definição
escolher entre alternativas, num ambiente de recursos escassos. Nunca há
almoços grátis, há sempre alguém a pagar. O que os políticos em geral fazem é
adiar custos ou distribuir a fatura pelos mais fracos ou sem poder de pressão.
É a isto que temos assistido no país, proveitos generosos para alguns com
custos para o povo em geral ou para pequenos grupos sem poder. Assim foi com as
estradas desnecessárias, a política energética, a banca, as pensões e agora de
novo com o arrendamento. A iliteracia financeira e uma sociedade infantilizada
e que se auto desresponsabiliza têm sido dois dos grandes aliados para a falta
de qualidade das nossas políticas públicas.
O que se passou em
Torremolinos com os estudantes em viagem de finalistas e, especialmente, a reação de
alguns pais expôs de forma dramática a hierarquia de valores de parte da
sociedade portuguesa. A destruição tem como culpado o hotel e os pais
consideram normal entregar os filhos para uma viagem com bar aberto a partir
das 11 da manhã. É a desresponsabilização levada ao seu extremo, com os
próprios filhos, e que exemplifica a atitude que temos tido em relação à dívida
e aos ditos “direitos” ao salário, aos subsídios, às pensões, enfim a tudo, até
a ter uma casa com a renda que se pode pagar no sítio favorito.
Estamos muito endividados? A
culpa não é nossa, dirão, é dos alemães e eventualmente dos holandeses que nos
emprestaram o dinheiro e ganharam bom dinheiro com isso. O Estado está falido e
não pode pagar os salários que foram subindo muito mais do que a economia desde
a primeira metade da década de 90? Quero lá saber, defendem, considerando que
têm direito a esse salário e a um emprego para a vida, nem que para isso os
serviços de justiça, segurança, saúde e educação piorem. Há pensões demasiado
altas que em nada correspondem ao que se descontou e ao princípio geral de
solidariedade entre quem tem mais e menos e entre gerações? Pouco me importa,
dirão os beneficiários dessas pensões, porque a culpa não é deles, têm direito.
António Costa e os que apoiam
o seu Governo conhecem e usam e abusam como poucos a sociedade em que nos
transformamos. Garantem os nossos direitos iludindo o preço que estamos ou
vamos pagar por eles. Tudo é apresentado como construído em defesa dos mais
desfavorecidos quando uma análise mais profunda a muitas dessas medidas resulta
em geral no efeito contrário. E nalguns temas nem se toca, como é o caso das
rendas da energia.
Vamos a alguns exemplos
recentes.
As alterações à lei do
arrendamento têm o desejável objetivo de proteger os idosos, as pessoas com
deficiência, as famílias com rendimentos mais baixos e os arrendatários de
casas degradadas de serem despejados. Nos valores da nossa sociedade é um objetivo
que todos perseguimos. Não queremos, obviamente, ver em Portugal aquilo a que
assistimos nos Estados Unidos, onde a polícia entra pelas casas a dentro e põe
as pessoas que não pagam literalmente a viverem na rua. Mas quando se intervém
num mercado, seja ele qual for, é preciso não confundir aquilo que se deseja
com o que a atuação vai de facto produzir.
Primeiro, estamos a fazer com
que os proprietários suportem os custos de uma política que é social. Ninguém
espera que os donos dos supermercados paguem a alimentação das pessoas que não
têm dinheiro para comer ou ainda que as empresas de energia paguem a conta de
quem não aguenta a fatura da luz. Mas parece considerar-se normal – como
aconteceu no passado – fazer com que os proprietários das casas paguem o
direito à habitação.
A crer nos dados fornecidos
pelo Governo, o congelamento das rendas abrange sete mil contratos. Levando em
conta o universo, ganhava-se mais se o Estado pagasse a diferença da renda
livre aos proprietários. O objetivo de proteção das pessoas atingia-se sem os
efeitos negativos desta medida.
E quais são os efeitos
negativos? Contrariamente ao que pode parecer, a prorrogação do congelamento
destas rendas terá como efeito aumentar ainda mais as rendas das casas que
estão no regime livre, já que as outras estão como que “prisioneiras”. Ou seja,
em vez de contribuir para arrefecer o mercado do arrendamento, esta medida
lança mais achas para a fogueira.
No mesmo sentido vão os
efeitos de impor agora aos proprietários que indemnizem os inquilinos no
equivalente a dois anos de rendas quando querem fazer obras profundas (antes
era um ano), exigindo-se ainda que a intervenção no imóvel corresponda a 25% do
valor patrimonial. Há um conjunto de proprietários que deixará de ter dinheiro
para pagar o despejo – serão obviamente os mais pobres – e, como consequência,
menos casas serão reabilitadas e colocadas como oferta no mercado. O efeito é
mais uma vez menos oferta de casas contribuindo-se também por esta via para o
aumento das rendas das que estão livres.
E eis como medidas que parecem
positivas têm um efeito negativo sobre o mercado do arrendamento, porque o
Estado não quer assumir o seu papel social para o qual pagamos impostos.
O que se passa na banca é
também um exemplo de desresponsabilização de quem deveria ser responsabilizado.
No fim-de-semana soube-se através do Expresso que Nuno Vasconcellos, acionista
da Ongoing – que entrou em insolvência – com Rafael Mora, tinha apenas uma mota
de água para responder por uma dívida de 9,7 milhões de euros ao BCP. Em março
soube-se que Bernardo Moniz da Maia tem um mandato de captura da Interpol por suspeitas de ter lesado o Estado brasileiro. Este mesmo empresário esteve envolvido na guerra do
BCP de 2007, foi administrador do grupo BES e o Novo Banco ficou-lhe com um
barco e um avião por dívidas.
São dois de outros tantos
exemplos que nos revelam para onde foi o dinheiro que os bancos estão a
precisar, dos seus acionistas, como o BCP, ou dos contribuintes, como acontece
com a CGD. Com a proliferação destes casos, o país, como sociedade, deveria estar
a exigir alterações legislativas que facilitassem a acusação e prisão destes
devedores assim como dos gestores que lhes concederam o crédito. Assim como
deveríamos estar a exigir ter conhecimento dos grandes devedores que não estão
a pagar os seus empréstimos à CGD. Mas nada disso está a acontecer e os dois
inquéritos parlamentares à Caixa até parecem ter desaparecido.
Estes casos não são culpa de
ninguém, são culpa nossa, enquanto sociedade. É a hierarquia de valores que temos
refletida no seu grau extremo nas viagens de finalistas e de forma complexa na
crise financeira do país, que torna tudo isto possível.
Nesta grande ilusão, os
contribuintes pagam as crises dos bancos sem que ninguém seja responsabilizado,
os proprietários suportam as rendas de quem não consegue pagar por uma casa, as
novas gerações pagam com salários mais baixos os salários mais altos de quem
está há mais tempo empregado, quem está a trabalhar paga as pensões que não vai
ter e as gerações futuras pagarão a dívida que estamos a deixar. Os recursos
são escassos e para uns terem mais os outros têm menos, essa é a escolha que
acontece sempre no presente e entre gerações. E a escolha é nossa, a culpa é
nossa. Quem nos governa apenas reflete a imagem da nossa hierarquia de valores.
Título e Texto: Helena Garrido, Observador,
13-4-2017
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