Aparecido Raimundo de Souza
1
De repente, numa granítica
quietude introspectiva, estanco, resoluto, os passos. Olho, então, meio que
desconfiado, para o espelho, preso à parede, bem ali na minha frente, em meio à
penumbra muda do quarto entulhado de lembranças extenuadas. Atarantado, num
esgar de segundos, me assusto com o que vejo, ou melhor, fico apatetado,
paralisado, com o que não gostaria, jamais, de encontrar diante dos olhos.
2
No fundo, a verdade é uma só.
Permaneço inconfundível na minha seriedade à flor da pele, como uma vertigem
derretendo minhas entranhas. Algo insólito a me fazer voar por entre labirintos
iracundos. Por alguns breves momentos, me ponho em pânico, me sinto pequeno
diante desse espelho. Dito de outra forma, na minha idade, não é o tamanho do
evento que me assusta. O que me amedronta é o que virá depois dele.
3
O porta-voz do meu destino,
como se estivesse emaranhado nos sargaços de um mar imenso, e mais que isso,
como se sofresse a pressão frenética de todos os detalhes que eu vivo, não
sinaliza, a meu favor, nenhuma válvula de escape. Perdido dentro de mim, um
sorriso impreciso sai às carreiras, como um neném recém-nascido. Percebo, com
profundo pesar, que não sobrou muita coisa daquele jovem de trinta anos atrás.
4
Do tempo que a vida fluía, não
com a intensidade de coisas findas, mas com a garra e a perseverança de que os
trilhos e sendas a serem percorridos, eram mais cheios de flores, de
deslumbramentos geográficos de formas fortes, e concretas, tão concretas que
não se precisava guardar fantasias policrômicas ou pegar, nas asas do tempo,
uma carona, para evitar que a juventude ganhasse a passos largos o destino de
um porvir incerto.
5
De repente, entre perplexo e
abobalhado, tomo conhecimento e consciência de que o meu tempo passou. Meus
filhos cresceram. Casaram, me deram
netos. As companheiras de outrora viraram ex-consortes. Agasalharam as antigas desilusões em outros
braços, e se soergueram.
6
As pessoas que viviam ao meu
redor ficaram mais velhas. Os cabelos delas embranqueceram, outras tantas
partiram, deixando em seus lugares velhas fotografias amarelas, que não falam
do tempo presente, mas tão somente de uma constrangedora e ininterrupta saudade
que fere profundamente, como se possuísse gumes pontiagudos. O meu eu
despedaçado, rolou para o abismo de uma taciturnidade repugnante, detestável,
abraçado a uma saudade pegajosa que insistiu em ficar grudada em meu corpo, sem
querer ir embora.
7
Tanto tempo meu Deus não olho
para meu rosto! Não mexo nos meus cabelos, não sinto a testa enleada com meia
dúzia de rugas. Há tantos janeiros, não sei quantos, não sentia pena de ter
perdido tanto tempo tentando encontrar algo útil, algo que talvez pudesse ser
meu. Por uma fresta mínima de lucidez, não me reconheço nos pequenos gestos. A
porta que me levaria algum lugar se fechou com uma batida pesada. Lembra um
jazigo sendo lacrado depois de repousado o féretro à terra fria.
8
Passo a mão no espelho, na expectativa
de que seja um momento fugaz, de pura emoção. Tento de forma extrema, me
exorcizar de todos os pensamentos abomináveis e invejosos que me avassalam a
calma, vindos do fundo de uma utopia fragilizada, quebrada, truncada.
9
Todavia, é exatamente nesse
momento que percebo um desprovido de conteúdo, um desabitado e frívolo vazio de
proporções imensas tomando formas fantasmagóricas e preenchendo os espaços que
restam sadios e robustos guardados para a possível chegada de uma empolgação
que prometia vir de muito longe.
10
Nesse momento, porém, diante
do espelho, na penumbra do quarto, não sei dizer, ao certo, se a tal fortuna
apareceu. Se chegou aqui em casa, se tocou a campainha, se preencheu minha
sala, e se, ao ir embora, deixou algum recado com o porteiro, ou com o vizinho
do lado, ou de frente.
11
Não sei dizer, igualmente,
como não saberia precisar onde estava ou o que foi feito do meu lado gente. Do
meu lado humano. Não sei mesmo lado da moeda, onde ficou metida minha cabeça,
ou o rumo do nariz. O fato é que esses pequenos e domésticos contratempos me
impedem de pressentir o cheiro forte e saudável, pujante e fornido da sua
aproximação.
12
Apenas me recordo que tudo
ficou no vazio. Tudo virou vazio e o vazio ficou, por fim, tão grande, tão
intransigente, tão contumaz e acirrado, que inundou minha capacidade de
compreensão da realidade, a ponto de uma bruxa aparecer na janela, de fantasmas
rangerem seus sapatos de encontro ao chão e de um anjo mau e decaído descer de
algum plano acima deste em que vivemos e apagar a chama da tranquilidade
mística que reinava por todos os cantos da casa.
13
Às vezes tenho saudades de
voltar ao passado. Fazer parte da paisagem do ontem, colher frutos caídos,
beber da água que passou sob a ponte, de capturar miragens dos tempos de
menino, de avivar lembranças da mãe ralhando, do pai voltando do trabalho, dos
irmãos sentados à mesa do café para o primeiro desjejum. De poder encontrar as
oportunidades que foram jogadas ao ralo.
14
De rever com olhos restaurados,
os momentos de arroubos e embevecimentos, capturar encantamentos que estiveram
ao alcance das minhas mãos, mas que, por ignorância tamanha, me fiz palhaço de
um rei deposto, e me tornei um bobo da sua corte, achando que o melhor e o mais
acertado seria atender aos desjuízos que afloravam da cabeça vazia.
15
Do apartamento ao lado,
através da parede compartilhada, escuto um som distante. É a solidão chegando
de seu passeio. A desgranhenta se fez
companheira. Inseparável. Veio morar
junto, sem ser convidada. Passou a fazer parte do meu cotidiano, a me dar
ordens e promover pequenos contratempos. Com o decorrer dos dias, se
materializou se transformou em rimas de total fracasso.
16
O sol que brilhava bonito e
quente sumiu do firmamento, e, em seu lugar, um punhado de nuvens escuras
coroou de tristezas incertas todos os sonhos que estavam por nascer.
17
Alguma coisa desconhecida
aproveitou o momento de fraqueza e desluziu o brilho das estradas, escureceu os
horizontes e fez sumir nas brumas da insensatez, o amanhã que se preparava para
resplandecer por inteiro. De súbito, as horas entram em colapso, o tempo se
comprime dentro de um túnel sem saída, escuro, frio, desconhecido. No mesmo
passo, os pássaros deixaram de cantar, o vento de soprar gostoso nos meus
ouvidos.
18
Novas portas vão se batendo às
minhas costas, chaves secretas fecham entradas possíveis à minha presença, e
novamente os espíritos inquietos da solidão se agigantam e, à medida que
aumentam de forma e tamanho, pressionam o pouco da Esperança que insiste manter
viva a tênue luz que resta acesa em meio a toda essa imensurável escuridão.
19
Pudesse vestir, neste momento,
o terno do presente, calçar os sapatos de novas caminhadas, me abrir matreiro,
astuto, esquivo, calculista, esperto... me soltar das amarras, por inteiro,
para um novo dia de sol na soleira da eternidade, talvez esse espelho aqui do
meu quarto não me botasse tanto medo dentro do coração.
20
Talvez se encontrasse as
flores do cristal eterno, e pudesse olhar ao meu redor com outras perspectivas
de amanhã, todos os meus mortos se levantassem de suas covas, e surgissem,
diante de mim, de mãos estendidas, com as expectativas de começarem tudo outra
vez (como uma volta ao recomeço).
21
Se esse milagre se realiza, eu
não sentiria mais, com certeza, esse punhal maligno, a riscar o ar, a desenhar
ao meu redor ciladas circunspectas. Quem sabe, não estivesse tudo perdido,
talvez, quem sabe, ainda, não fosse muito tarde para ser novamente e
imensamente Feliz.
22
Outra vez me reencontrar, me
reconstruir, me reformar, me reorganizar, me recompor, dentro do espelho, desse
espelho que se furta de mim. Apesar
disso, apesar de todos esses percalços e estorvos enfadamentos e incomodidades,
apesar de me sentir um prisioneiro cumprindo sentença perpétua, sem chance
alguma de condicional, tenho absoluta certeza de que, antes do meu fim, antes
de me acabar em pó, em barro, em cinza, em nada, EU AINDA SEREI COMPLETAMENTE
FELIZ.
Título e Texto: Aparecido Raimundo de Souza,
jornalista. De Belo Horizonte, nas Minas Gerais. 19-4-2017
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O espelho muitas vezes nos enganam nos faz ver coisas que não existem mesmo assim ainda é preciso acreditar que, o espelho muitas vezes esconde nossa verdadeira felicidade, nunca é tarde pra encontrar a felicidade desejada. Parabéns Aparecido pelo excelente texto.
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