(Leia o texto e não assista à minissérie da
Rede Globo de Televisão)
Aparecido Raimundo de Souza
1
CARLOS ENTRA atabalhoadamente
no quarto do hotel e chaveia a porta. Está aflito, completamente transtornado.
Suas mãos tremem. É percebível, em seu rosto, a sombra negra do desespero.
Tomado por torturante e penoso custo, alcança o telefone celular no bolso
traseiro da calça. Disca um número. Quando do outro lado uma voz grossa atende,
fala:
— Luiz, sou eu. Desculpe ligar
pra você a esta hora. Eu sei, eu sei, quase duas da manhã. Não, calma, vou te
contar tudo o que aconteceu. E o porquê de incomodar o amigo em seu merecido
descanso. Não saia daí. Espera um minuto.
2
Larga o telefone sobre a cama.
Há um breve espaço carregado de amuo. Confere se a porta está realmente bem
trancada. Tira a jaqueta de couro e joga sobre a chave, temendo que alguém, do
lado de fora, espie pelo buraco da fechadura. Corre à janela. Por detrás da
cortina espia – longamente – o derredor. Tudo parece normal. Ajeita a cortina.
Continua nervoso. Acende um novo cigarro. Apaga a luz. Volta ao telefone.
Continua:
— Luiz, pelo amor de Deus.
Deixa eu te falar. Me escuta. Por favor, só me escuta...
Começa a chorar.
— Luiz, você precisa me
ajudar. Você é o único amigo que tenho e você sabe disso. Como? Fala mais alto.
Ah, o que foi que eu fiz? Você não vai acreditar. Não, claro, estou calmo.
Agitado? Eu? Pareço fora de controle? - diz, a voz comovida. Impressão sua.
3
Neste momento, quebrando o
silêncio da noite, um carro com a sirene ligada e o Giroflex aceso freia
bruscamente em frente à porta principal do hotel. Um facho de luz vermelha,
apesar da cortina cerrada, e do aposento às escuras, se projeta sobre o teto
rompendo o vazio da escuridão reinante. Chega a seus ouvidos várias pessoas
falando ao mesmo tempo. Carlos se desespera ainda mais. Parece prestes a ser
acometido por um piripaque, tamanho é o pavor grudado em sua pele.
— Luiz, me dá mais um minuto.
Acho que são eles. Só pode ser eles. Quem mais? Meu amigo, minha situação é
caótica. Estou no mato sem cachorro. Me
acharam. Calma aí. Deixa eu conferir...
Corre, novamente, à janela.
Cuidadosamente observa.
Recomeça o diálogo:
— Luiz, meu amigo, desculpe.
Pensei que fosse a polícia. Os homens estão no meu encalço. Quero dizer, ainda
não. Ufa, é apenas uma ambulância. Deve ter sido acionada por alguém aqui da
espelunca de beira de estrada onde me escondi.
4
Preso na decadência física da
aflição volta a chorar. Desta vez com mais intensidade. Acende outro cigarro
sem ter consumido o primeiro. Traga várias vezes. Caminha de um lado para
outro, num vai e vem enervante.
— Luiz, Luiz, por favor,
amigo, me escuta. Já sei o que vai dizer, mas, por favor, me escuta. É sério.
Não estou brincando. Olha só. Está sentado? O quê? Por que motivo a polícia
está atrás de mim? Espera. Eu vou contar. Espera só um minuto. É o seguinte,
Luiz. Eu atirei na Claudia. Eu atirei, de verdade. Sei lá. Acho que matei. Por
quê? Como, por quê? Ela estava emprestando as partes. O que? Que partes? Aquelas
partes proibidas. Não acredito que você não saiba do que estou falando. A
Claudia, Luiz, estava me traindo. Isso mesmo, meu amigo. A safada tinha um caso
com um sujeitinho lá do prédio. Um morador novo. O infeliz mudou faz pouco.
Como descobri? Ora, Luiz, pelo amor de Deus. Não foi obra do acaso.
— Alguém do condomínio – sei
lá quem, me mandou um bilhete anônimo. Isso. Colocou na caixinha de
correspondências do meu apartamento. Quem mandou? Como vou saber quem teve essa
maldita e infeliz ideia? Antes eu não tivesse tomado conhecimento. Seria um
corno manso assumido e pacífico. Hoje quem não é corno? Dá pra contar nos dedos
os maridos que não levaram um galho no meio da testa. Vamos tirar por você. Me
diga aí, sem medo de errar: você confia cem por cento na Marilda, sua esposa?
Duvido! O quê? Estou fugindo da conversa? Tá legal! O amigo tem razão.
5
— Enquanto eu desconhecia os
fatos, era um corno a mais ajudando a aumentar a estatística, porém, com o
espírito tranquilo, podendo deitar a cabeça e dormir no aconchego sonhador do
travesseiro macio. Agora, além do chifre e da vergonha pela qual estou
passando, consegui a proeza de colocar meio mundo nos meus calcanhares. Luiz,
me ajude. Olha... eu... o quê?! Você acha que eu bebi demais e estou de
ressaca? Nenhuma das alternativas, amigo, infelizmente. Demais a mais, não bebo
um gole faz tempo... antes fosse...
***
Novo alarido volta a se
produzir no saguão de entrada. Carlos interrompe a conversa e volta a
perscrutar pela janela. Aproveita para acender mais um cigarro. O terceiro num
curto espaço de cinco minutos. Entre uma tragada e outra rói, nervosamente, as
unhas.
— Luiz, posso ver daqui. Estão
tirando uma pessoa carregada numa maca. Ummmmmm! Parece ser um homem de idade
avançada. Tudo bem. Tudo bem... o quê? A que horas? A que horas o quê, cara?
Ah, que eu atirei na Claudia? Acredito que por volta de onze e meia. Talvez um
pouco mais. Foi assim, amigo. Eu cheguei de supetão no prédio onde a gente
mora. Pedi ao chefe para sair mais cedo alegando ter que ir ao médico. Não sei
se já lhe falei, mas ando com problemas de ejaculação precoce. Daí não poder
beber nada que contenha álcool.
— Essa coisa de ejaculação vem
mexendo com o meu sossego, me tirando o sono. Resolvi procurar um especialista.
Fui umas duas vezes e o doutor me disse que se eu seguisse à risca o
tratamento, muito em breve poderia surpreender a minha companheira. No final
das contas, meu amigo, que ironia do destino!... foi ela quem me surpreendeu.
Imagine amigo! Logo a Claudia, que eu amava tanto. O quê? Repete. Ah, como foi?
6
— Tá... toda essa história começou quando
chegou as minhas mãos um bilhete. Sempre
antes de deixar o prédio, paro para ver se tem alguma correspondência ou conta
para ser paga. E hoje não foi diferente. Ao abrir a caixinha referente ao meu
apartamento, me deparei com o oitavo envelopinho amarelo, selado, endereçado a
mim. Sete outros já vinham me alertado que a Claudia estava de namorico com um
morador novo no pedaço. “Se quiser pegar sua mulher se esbaldando com a sua
fruta proibida, dê um jeito de chegar fora do horário convencional. Assinado,
uma amiga que lhe quer muito bem e não deseja vê-lo sofrer”.
— Nos bilhetes anteriores, a
desconhecida me falava do novo morador, dava seu nome, descrevia suas
características, passava o número do apartamento, enfim, aos poucos montou um
quebra cabeça que fui mentalizando aos poucos. Fiquei, como se diz, grosso
modo, sem a coluna vertebral. Posto ao corrente dessas informações todas,
decidi que hoje, exatamente hoje, seria o dia perfeito para colocar toda a
sujeira em pratos limpos. Ver se realmente a coisa tinha algum fundo de
verdade. Inventei para meu chefe que precisava retornar ao urologista para
cuidar de um problema na próstata e, então, pra não perder tempo, solicitei um
Uber. Ao me ver em frente de casa, subi correndo, deixando de usar, inclusive,
os elevadores. Amigo, sem mentira nenhuma. Cheguei no meu andar com a língua de
fora, a camisa toda empapada, o corpo inteiro suando em bicas. Putz grilo!
Nunca em minha vida tinha subido até o meu apartamento pelas escadas.
— Nem quando ligaram para a
empresa e me disseram que a Claudia estava tendo contrações e precisava ser
levada às carreiras para o hospital para ganhar o nosso bebê. Antes de meter a
chave encostei o ouvido e tentei ouvir alguma coisa. Tudo normal. Girei então a
chave na fechadura sem fazer barulho. Entrei pé ante pé, em marcha lenta,
pausada, de quem não tem pressa. Fui direto para o nosso quarto. Tomado pela
curiosidade, misturada com a raiva, nem me lembrei de passar pelos aposentos de
Jéssica, a nossa neném. Foi aí, Luiz, foi aí, que meus olhos esbugalharam e não
acreditaram no que presenciavam.
7
— Fixando os olhos na escuridão
à minha frente, divisei vagamente a forma do guarda roupa, da penteadeira, o
espelho e o distante reflexo da cama no escuro. Foi nesse momento que percebi a
Claudia pelada na cama. Nuazinha como veio ao mundo. Na nossa cama, no colchão
que eu ainda nem acabei de pagar as prestações. Devo três ou quatro
mensalidades, se não me engano. Ele, o garanhão engalfinhado por cima, a
buzanfa branca virada pra porta. Ela as pernas diametralmente abertas em vê, a
racha totalmente reganhada, exposta.
— Os beijos que trocavam, eram
postos, fundos na boca. No mesmo tom, a vagabunda lhe oferecia, gulosa e com
sofreguidão, a língua, que se perdia sem ruído em meio às salivas de ambos. Foi
nessa hora que vi a ferramenta do cara entrando e saindo num frenesi incontrolável.
Falavam algo numa linguagem ininteligível que não consegui entender bulhufas.
Dentro de mim cresceu uma inflamação impossível de dominar. A princípio pensei
em botar a boca no trombone e soltar a voz. Gritar, gritar, latir, sei lá.
Lembrei daquele filme onde o marido chega de viagem e topa com a mulher nos
braços de outro e o sujeito, querendo dar uma de santinho, com a maior cara de
pau, tenta se desculpar com aquela frase famosa: “não é nada do que está pensando”.
8
— Eu precisava ser mais contundente e
direto. Girei sobre meu próprio corpo, o olhar esgazeado. Voltei à sala. Me
aproximei da estante onde guardo dentro de um livro falso, um trinta e oito que
comprei nem sei com que finalidade. Passei a mão no pau de fogo e, no mesmo
passo que fui, voltei. Daí pra frente, estremunhado, o sangue fervendo, a
cabeça girando, o coração a saltar pela boca, só me lembro de ter explodido
numa ira medonha berrando feito um possesso: “vagabunda, vaca, safada”. Você
disse que não podia manter relações comigo por causa do resguardo. Cadê o tal
resguardo, sua vadia? E a cada palavra pronunciada, eu apertava o gatilho, com
ódio, com fúria e determinação. Eu, justo eu que deveria sem um modelo de
conduta.
— Os pipocos quebraram o
marasmo e no lugar dele, se formou uma baita de uma confusão. Me recordo que a
pistola caiu no chão, o filho da mãe do amante reagiu, estupefato, os olhos
fuzilantes de assombro. Como um gato assustado, o meu algoz deu um salto
magnífico. Suas coisas, no meio das pernas, sofreram uma espécie de amolecência
repentina, ao tempo que o caboclo, bosteando e querendo se tampar, gritava: “Meu Pai, o que é isso, valha-me Deus e Nossa
Senhora! Você não havia me dito que
era divorciada?”.
9
— Luiz, meu amigo. Não esperei pra ver o
resultado da besteira que havia acabado de fazer. Tomado por uma crise de
insânia repentina, deixei o apartamento em desabalada carreira e corri,
chorando, trêmulo feito vara verde. Ganhei, de volta, as escadas. Se acaso
passasse por um velório, o furor que carregava nas ventas faria o defunto se
levantar do caixão e sair correndo deixando a galera em polvorosa. Não ria cara. É sério! O que? Como sai do
prédio? Eu explico.
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— Foi assim, Luiz. Desembestei feito um
furacão até a garagem. Essa parte do prédio é escura, não tem câmeras, nem
sensor de presença. Por sorte um morador retardatário acabava de entrar. A
porta automática quase se fechava.
Saltei por baixo dela, do jeito que vinha, arranhei o braço, rasguei a
camisa, perdi um par do sapato, mas graças a Deus deixei o edifício da mesma
forma que entrei. Sem ninguém pregar os olhos em mim. O quê, Luiz? O porteiro?
Se o porteiro me viu? Claro que não. No meu condomínio não tem porteiro. Nem
vigia. Meu edifício é singelo, o condomínio tem uma taxa mensal muito baixa,
quase pro forma, só mesmo para manter as aparências dos serviços básicos. Os
demais residentes são proprietários ou inquilinos de baixa renda, assim como
eu. Não existem funcionários aos cachos como no seu prédio.
— Por lá, meu amigo, só há uma
senhora, dona Cândida, que dia sim, dia não, aparece, cuida da limpeza e
procede à retirada do lixo. Os moradores têm um controle individual do
estacionamento, de modo que, a galera que possui automóvel abre ou fecha a
garagem quando quer sair ou entrar. Na verdade, por pura sorte, na hora do
sufoco, eu aproveitei o vácuo da criatura que regressava da rua naquele exato
momento. Luiz, Luiz, não sei como vai ser daqui pra frente. Não sei o que
acontecerá com a minha filhinha. Nem a vi. Além de fugitivo, acumulo também
agora a peja de pai desnaturado. A minha primeira filha, a coitadinha da
Jéssica, acaba de nascer, faz quinze dias que abriu os olhos para este mundo
desgraçado e eu nem me lembrei de passar pelo quartinho dela pra ver se estava
bem. E agora, Luiz, e agora? O que é que eu faço? Me ajuda. Preciso de você,
Luiz, pelo amor de Deus.
11
Novos passos surgem no
corredor. Carlos se põe de prontidão diante dessa nova ameaça. Já não fala com
o amigo, cochicha:
— Luiz, Luiz, vem vindo alguém.
Droga! Luiz, por favor, me ajuda. Eu não quero ser preso. Tenha paciência
comigo. Não desliga o telefone. Deixa ver se descubro quem está se aproximando.
O assoalho é daqueles antigos. Dá pra escutar? Não? Aqui pra mim a coisa é
nítida. Faz um estardalhaço dos diabos. Calma, calma aí...
12
Como se temesse ser
descoberto, Carlos retira a jaqueta que jogara sobre a chave. Mete o olho no
buraco da fechadura e tenta enquadrar o corredor. Realmente alguém transita por
ele. Apesar da noite um pouco fria, Carlos se mantém com o rosto empapado de
suor. As mãos insistem na tremedeira descomedida. O coração parece saltar pela
boca. Sua voz está rouca e gutural:
— Psiu, Luiz! Não posso falar
alto. De fato, vem vindo alguém. O quê? Não está me ouvindo? Não posso aumentar
a voz. Só me escuta... por favor, amigo, preciso da sua força.
Passados alguns minutos de
plena agonia, Carlos atina com os visitantes noturnos.
— Luiz, relaxa. Tem graça?
Veja só. Quem deveria relaxar nessa história seria eu. É só um casalzinho
procurando o número do apartamento. Deus Santo, essa foi por pouco... ufaaaaa!
— Como Luiz? Espera aí! Será
que ouvi direito? Você não está acreditando em mim? Meu irmão, por tudo quanto
é mais sagrado. Acha que eu inventaria uma história mirabolante dessas? Com que
finalidade? Responda? O que eu ganharia? Não entendi. O telefone está ruim.
Fala de novo. Como eu posso afirmar que a Claudia está morta?
— Luiz, eu atirei na
sem-vergonha de uma distância muito pequena. Praticamente à queima-roupa.
Delirando? Você acha que eu inventei essa balela? Delirando? Luiz, Luiz, se
ponha no meu lugar. Pense, raciocine. Faça isso friamente. Eu tenho uma filha
pra criar. Mulher para sustentar, perdão, tinha. Mas em paralelo restou meu
trabalho, contas a pagar, obrigações, deveres, Luiz, eu estou em pânico, estou
sem chão, sem saber o que fazer, ou para onde ir, e você depois de tudo o que
lhe contei, depois de abrir meu coração, você simplesmente diz que estou
delirando? O quê? Surtei? Luiz, por favor, pelo amor que você tem na sua mãe.
Eu nunca lhe pedi nada. Você é ou não é meu amigo? Afinal, nossa amizade foi
feita num botequim de esquina, a poder de goles de cachaça ou é algo sólido,
forte, indestrutível, em que eu possa realmente confiar?
— Pelo que você acaba de
falar, somos amigos, mas não de verdade, do peito, não posso contar com você
para o que der e vier. Toda ajuda que puder me dar agora será bem-vinda. Neste
momento, Luiz, necessito sair daqui. Estou num lugar muito exposto e para
aumentar o medonho da situação caótica em que me vejo metido, estou enfiado até
o pescoço, corro o risco de ser preso a qualquer momento. Polícia? Como a
polícia chegaria até mim? Fácil, Luiz.
13
— Lembra que eu atirei na
minha mulher e não no carcamano do amante? Pois então, na afobação, deixei a
arma lá, jogada? A essas alturas, ele, o cafajeste, deve ter dado uma de
bonzinho, de vítima, voltado para seu apê, numa boa, tomado um belo de um
banho, e claro, uma vez em segurança, ligado e batido a minha ficha para a
delegacia, que fica a poucos quarteirões de casa. Nessa hora, creio, toda a
guarnição deve estar em meu encalço. Luiz, Luiz, responda, por favor, Luiz,
Luiz...
Carlos começa a chorar e a
soluçar copiosamente. Suas mãos insistem em continuar tremendo com uma
intensidade acima do normal. Quase não consegue segurar o celular. Tomado pelo
medo de gritar, se enfia debaixo da cama. Bate com o celular no assoalho, na
esperança de que o aparelho esteja com a bateria descarregada. Por sorte, não
está. O diálogo é prontamente restabelecido.
— O que houve Luiz? Por que
ficou todo esse tempo sem responder? Meu Deus! Pensei que tivesse desligado, ou
que a bateria acabara, sei lá... Luiz, não dá pra você vir até aqui me buscar?
Como? Sem carro? Luiz, pega um táxi, um Uber, arranja um jegue, rouba um
cavalo... eu pago as despesas que fizer, mas venha. Como? Onde estou? Embaixo
da cama. Luiz, eu estou embaixo da cama. Acredita nisso? Estou me sentindo um
rato. Tá legal, amigo, eu saio. Eu saio... me dá um tempo...
14
Carlos, com esforço, consegue
sair debaixo da cama. Vozes e passos no corredor voltam a colocá-lo em
polvorosa. Treme, na base.
— Luiz, meu amigo. Acho que
minha hora chegou. Agora são eles. Sinto que são eles. Meu Deus, Luiz, o que
você me diz de eu tentar pular pela janela?
Carlos caminha até o parapeito
da janela, puxa um pouco a cortina, abre uma banda e mete a cara. Recua, no
mesmo instante, amedrontadíssimo.
— Muito alto. Fora de
cogitação. Pela janela impossível! Luiz, ainda está aí? Me dá uma força, amigo.
Como faço para sair desta enrascada? O quê? Falar da Claudia? Pirou? Luiz,
Luiz, me escuta... se agora estou aqui metido neste inferno de quarto de hotel,
preso a um caminho sem volta, você ainda quer que eu fale de quem está me
causando todo esse transtorno? Tá, Luiz, eu falo. Luiz, eu falo. O que
realmente quer ouvir? Se eu gostava dela? O que você acha?
— Claudia foi meu primeiro
amor, minha primeira paixão. A única mulher que amei em toda minha vida. Por
que a matei? Pela traição? Não, amigo, não foi pela traição. Para lavar minha
honra? Não, Luiz. Também não foi para lavar minha honra. Claudia era um pedaço
de mim. Minha vida, meus sonhos. Tudo o que eu construí tudo o que me tornei e
o que hoje sou, agradeço a ela. Foi por ela, Luiz o sacrifício de uma vida
inteira...
15
— Um ritual de noites e dias lutando para conseguir um lar decente, um nome, uma família. Com o nascimento de nossa filha Jéssica, eu me completei, me realizei como homem e como pai. Os dias eram assim. Livres, encantadores, sem nódoas ou manchas. Corria nos trilhos a nossa casa, enquanto eu prosperava no trabalho. Não faz quinze dias recebi a notícia de que seria aumentado. Imagine Carlos, aumentado! Os horizontes se abriam, e com eles novas portas, novos caminhos... até o instante em que Claudia, veio com a notícia...
— Um ritual de noites e dias lutando para conseguir um lar decente, um nome, uma família. Com o nascimento de nossa filha Jéssica, eu me completei, me realizei como homem e como pai. Os dias eram assim. Livres, encantadores, sem nódoas ou manchas. Corria nos trilhos a nossa casa, enquanto eu prosperava no trabalho. Não faz quinze dias recebi a notícia de que seria aumentado. Imagine Carlos, aumentado! Os horizontes se abriam, e com eles novas portas, novos caminhos... até o instante em que Claudia, veio com a notícia...
Levado pela emoção das
lembranças, Carlos entrementes se cala. A voz embarga e ele volta a se abrir
num choro convulso. Balbucia:
— Me sinto um rato. O quê? Que
notícia Luiz? Meu Deus! Não acredito que não tenha comentado com você. Como? Há
dois meses que não nos falamos? Que isso, Luiz! Zuretou da cabeça? Tudo bem.
Desculpe se não participei ao amigo. Deve ser em decorrência da correria.
Ultimamente tenho me esquecido de mim, de viver e, de roldão, desleixado um
pouco com a vida social, com os mais chegados. Como? Que notícia? Ah, tá. A
notícia! A Claudia, Luiz... a Claudia... desculpe não conter o choro (Carlos
soluça convulsivamente). A Claudia tem um tumor maligno na cabeça. Segundo o médico
que a atendeu, Claudia está com os dias contados. Se vai morrer? Claro que vai.
Tumor, cara! O doutor acha que é câncer. Mas antes de emitir um laudo
definitivo, quer ouvir uma segunda opinião. Como não vai, ah, sim você, como
sempre fazendo piadas numa hora dessas. Pelo amor de Deus, Luiz, fala sério.
Realmente ela não vai morrer... vendo por esse lado... claro, não morrerá.
— Em decorrência do tal
caroço, será impossível. Agora você sabe como eu também sei. Por infelicidade
do destino, por um deslize meu, por um ato impensado, eu me antecipei e aliviei
o sofrimento dela. Pra sempre. Cortei o mal pela raiz. Despachei a filha de uma
égua mais cedo. A essa hora, a infeliz deve estar prestando contas a São Pedro.
Ou a Deus. Ou, quem sabe, ao diabo, vai lá se saber nessa altura do campeonato!
Bem, agora não adianta mais chorar sobre o leite derramado. Ela já está morta.
E pensar que eu dei e ainda daria a minha vida por essa mulher... que até a
hora em que decidi atirar nela, seria capaz de dar a própria vida por ela, só
para estar ao lado e desfrutar do seu sorriso, da sua voz... no meu aniversário,
Luiz, ela me deu uma bermuda de marca... Nem você, que é o meu melhor e único
amigo, lembrou do meu aniversário...
16
— Imagine, ela juntou
dinheiro, guardou uns trocadinhos do pouco que ganhava como empregada doméstica
e me apareceu com a bermuda. Chamou os amigos e amigas dela, os vizinhos mais
próximos, fez um bolinho, comprou meia dúzia de refrigerantes. Com direito a
velinhas e parabéns. Se eu gostei? Ora, Luiz, eu amei. Nunca tive uma festa de
aniversário. Meus pais eram pobres, muitos irmãos, a gente não podia se dar ao
luxo de gastar com coisas supérfluas. Festa na nossa família era supérfluo.
Ainda me lembro dela me olhando bem dentro dos olhos, com aquele barrigão de
quase nove meses...
17
— Na hora que todo mundo se
juntou para cantar os parabéns, Claudia olhou bem no fundo dos meus olhos, me
deu um beijo e disse: “Nós, Carlos, eu e esta gatinha que logo virá ao mundo,
amamos você”. Tantas coisas boas guardo dela... e agora, depois da besteira que
fiz, não consigo ter raiva da infeliz. Não consigo guardar ódio,
ressentimento... Luiz, Luiz, vamos esquecer um pouco da Claudia. Ela já bateu
com as doze, mesmo. Que se há de fazer? Amigo, o tempo está passando. Meu tempo
corre, aliás, Luiz, meu tempo, se é que ele ainda existe, voa.
18
— Daqui algumas horas
amanhecerá e eu não sei o que farei da minha vida. Não acredito que esteja aqui
jogando conversa fora, enchendo teu saco, numa hora tão imprópria, enquanto os
acontecimentos lá fora, na rua, continuam rolando e eu aqui, metido neste
quarto sujo de hotel tentando me resgatar de mim mesmo. Luiz, eu não deveria
ter feito essa loucura. Seria bem mais fácil se assumisse o covarde que sempre
fui. Aquele banana que me acompanhou desde a infância...
19
— Se agisse dessa forma, ao
descobrir a traição, metia um tiro no coração, ao invés de matar a mulher com
quem me casei e prometi fidelidade e passar o resto dos meus dias. Se eu
botasse pra fora o babaca que nunca saiu de dentro de mim, atirava no ouvido e
fim de papo. Luiz, por favor, pela nossa amizade, venha até aqui me buscar. Não
me desampare. Preciso de um amigo, de um ombro onde deitar a cabeça... Luiz, eu
amava a Claudia. O que foi que eu fiz? Que grande sepultura eu cavei. Que
labirinto. Me diga Luiz, me responda, o que é que eu faço agora? O que será da
Jéssica?
— Coitadinha! Minha filhinha
ficou lá, sozinha, jogada, indefesa. Talvez esteja com fome, com sede... frio,
meu Jesus Cristo, O quê? Luiz, o que você disse? Não repita, não estou
acreditando. Repita. Não virá aqui me buscar? Luiz me escuta, a porcaria da
bateria está apitando. Logo esta droga de telefone pifará de vez. Venha me
apanhar aqui. O quê? Como? Você o quê? Não pode vir? Luiz, por favor, é um caso
de vida ou morte, não tenho para onde ir, preciso da tua força. Luiz, meu
amigo, por tudo quanto você mais ama. Passa a mão em você e vem...
20
A bateria finalmente acaba. O
visor se apaga em definitivo. Carlos senta no chão, pesadamente, apoiando as
costas na cama. Encosta a cabeça entre as mãos. Ainda sem poder conter as
lágrimas e os soluços, volta a mergulhar em profunda comoção. Sua mente enevoa.
Tenta juntar as peças. Rever os fatos. Em derredor, dentro daquelas quatro
paredes, o mundo que o cerca está extremamente estranho. Ouve o zumbido de um
relógio velho na parede, acima da porta.
***
Final
No minuto seguinte, como por
milagre, tudo lhe parece estranhamente silencioso. Fraco, derreado, cansado,
ofegante, Carlos se sente como um prato saboroso a ser servido à gula de seus
perseguidores implacáveis.
Título e Texto: Aparecido Raimundo de Souza,
jornalista. Do sitio “Shangri-Lá”. 25-4-2017
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