Helena Garrido
“Logo se vê e acredita no que digo, não
olhes para as estatísticas nem ligues às previsões”: estas as regras dos tempos
que correram. O Governo agora começa a assumir a austeridade que sempre
aplicou.
A política orçamental do
Governo de António Costa foi, e promete ser, mais austeritária do que a
concretizada pelo último ano de Governo de Pedro Passos Coelho. As perspectivas
desenhadas no Programa de Estabilidade e Crescimento 2017-2021 dizem-nos exatamente
isso: a página da designada austeridade não foi nem será virada. Como não podia
ser, se o PS continuasse a ser aquilo que sempre foi, um partido que defende a
integração de Portugal no euro e o respeito pelos compromissos da República
Portuguesa em relação aos tratados que assinou e à dívida que contraiu.
O mais extraordinário dos
tempos que vivemos em Portugal é a brutal diferença entre aquela que é a
mensagem política e aquilo que de facto o Governo faz. É o ditado popular “faz
o que eu digo, não faças o que eu faço” adaptado numa fórmula do género
“acredita no que eu digo, sem olhar para as estatísticas, nem para o dinheiro
que te entra de facto no bolso e muito menos para o teu poder de compra”.
Portugal já tinha sido um caso
de estudo pela resistência que os cidadãos revelaram perante a dose de
austeridade a que foram submetidos especialmente em 2012. Volta agora a ser um
caso de estudo, para economistas e políticos, que queiram investigar como se
aplica uma política de austeridade financeira, com o apoio da esquerda
tradicional e moderna, e convencendo a população em geral que a sua vida está e
vai ficar muito melhor do que de facto está. É de se lhe tirar o chapéu.
O grande erro cometido por
todos quantos há um ano se preocuparam com o futuro do país, no quadro do euro,
foi acreditar no que ouviam em vez de esperarem pelos atos antes de se
pronunciarem. Os atos revelaram uma profunda contradição com as palavras.
Depois de ter devolvido os salários à função pública e algumas pensões, o
Governo fez uso de tudo o que tinha à mão, e não era visível de imediato, para
reduzir o défice público. Foi tudo de facto histórico. O défice mais baixo da
democracia – agora sim com a revisão feita pelo INE – e um dos
saldos primários mais elevados do euro são devidamente acompanhados por
cativações de despesa historicamente elevados, cortes recorde no investimento
público e o já tradicional perdão fiscal.
Claro que a recuperação da
economia e especialmente o aumento do emprego ajudaram. Mas até isso pode ter
surpreendido o próprio Governo – nunca o saberemos. É apenas uma hipótese a
colocar face ao resultado de 2% obtido no défice — bastava ter chegado aos 2,3%
para se considerar um bom resultado, mesmo do ponto de vista da prova da
sustentabilidade da dívida (prova e não realidade). Olhando para trás,
percebe-se que o Governo pode ter sobre
reagido e até desperdiçado uma das armas que pode precisar mais tarde, a do
perdão fiscal.
Quando se olha para o que se
passou nas contas públicas em 2016 e aquilo que o Governo promete fazer este
ano e nos próximos, através do Programa de Estabilidade e Crescimento 2017-2021 (PEC17-21),
percebemos que António Costa persegue o mesmo objetivo do seu antecessor Pedro
Passos Coelho: controlar o “monstro” financeiro em que se transformaram as
administrações públicas e especialmente o Estado central. E percebe-se melhor
agora do que há um ano porque, finalmente, António Costa pode começar a mostrar
o seu jogo, condicionados que estão os partidos de esquerda que o apoiam.
É de facto uma pena não se
conseguir saber exatamente qual seria a realidade alternativa. Mas podemos
fazer um exercício apenas econômico-financeiro do que teria sido a continuidade
de Pedro Passos Coelho na governação. (Apenas no domínio da economia e das
finanças, porque a dinâmica política teria sido completamente diferente,
nomeadamente na vida do PS que estava sob séria ameaça se não tivesse subido ao
poder).
Comecemos pelo mais fácil que
é a diferença entre o que se prevê e aquilo que foi a troika. A diferença mais
significativa em relação aos anos da troika está na dose. O medicamento para a
grave doença das finanças públicas tem a mesma substância ativa: apertar o
cinto de quem trabalha para o Estado e de todos os que pagam impostos. As doses
da medicação são agora obviamente mais baixas, porque não estamos à beira da
bancarrota e sem acesso a financiamento. Agora a austeridade pode aproveitar a
recuperação já obtida com a terapia de choque do passado e a retoma da economia
ditada em grande parte pelo turismo. Além disso, e não menos importante,
criou-se para o “doente” um ambiente de descontração, garantido pelo discurso
do Governo de fim da austeridade e pela aliança com o PCP – o dono das
manifestações de rua – e com o Bloco – que que se pode dizer,
simplificadamente, que influencia mais o espaço da opinião publicada.
O que poderia ser diferente
sem nunca termos a certeza que o seria? O ano de 2016 poderia ter sido menos
turbulento, menos volátil, com um horizonte mais claro, aquele que só agora se
está a conseguir ter. Ou seja, a margem de manobra política que António Costa
ganhou em 2016 teve como preço a incerteza gerada pelo discurso agressivo
contra a Europa e a dita austeridade e pelas medidas de “reversão” adoptadas
nos primeiros meses de governação. Como é que esse preço se consubstanciou na
economia? Não sabemos. Resta-nos admitir a hipótese de que o investimento seria
mais alto – com elevada probabilidade. Recorde-se que a reposição de salários
da função pública prometida por Passos Coelho era mais lenta, o que significa
que poderia ter gasto mais em investimento público. De alguma forma, António
Costa trocou investimento público pela reposição de salários.
Além disso, podemos admitir
que as taxas de juro da dívida pública (aqui avaliadas pela média mensal da
taxa de rentabilidade a 10 anos) estariam mais baixas e a avaliação do risco do
país poderia já ter subido. No caso do ‘rating’ é aliás interessante verificar
que só agora, há uma semana, é que começam a surgir análises sobre a
possibilidade de o risco de Portugal melhorar a curto prazo. Foi o caso do
Commerzbank – a admitir que a DBRS pode melhorar o ‘rating’ de Portugal –
ou da Standard & Poor’s a sistematizar as condições em que a sua classificação pode subir: se a economia recuperar e o crédito malparado
baixar. Parece óbvio, mas até há bem pouco tempo o problema não era colocado
desta forma. Pelo contrário, o que se discutia era o risco de baixar o ‘rating’
e não as condições para o subir.
Em termos gerais, neste
exercício de realidade alternativa, é possível admitir que o crescimento da
economia seria mais elevado por via da confiança de quem investe já que a
confiança de quem consome – para a qual se dirigiu o atual Governo – teve um efeito,
mas limitado que pode também ser explicado pela falta de confiança do sector
privado.
Mas ponto a que chegamos hoje
permite-nos respirar de alívio porque as piores perspectivas não se
confirmaram. O Governo não fez o que disse que ia fazer e deu-nos uma
austeridade disfarçada, com menos investimento e mais impostos indiretos,
daquela que só conseguimos perceber passado algum tempo, animados (ou
preocupados) que estávamos com o que António Costa e Mário Centeno nos diziam.
E podemos ainda dar um segundo suspiro de alívio quando lemos o Programa de
Estabilidade. Estão lá os objetivos de honrar os compromissos financeiros e
reduzir a dimensão do Estado. Só não sabemos como é que o Governo o vai fazer.
Mas a austeridade que já existia é agora assumida, com menos disfarces, menos
mascarada.
Título e Texto: Helena Garrido, Observador,
20-4-2017
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