João Marques de Almeida
Quando nos aproximamos de mais um 25 de
Abril há heranças preocupantes do Estado Novo que vivem entre nós. Mas ao
contrário do discurso do regime, são as esquerdas que mais beneficiam dessas
heranças.
Sou profundamente de direita e
sou profundamente anti-salazarista. E as razões principais são as mesmas.
Grande parte das esquerdas,
tal como o Estado Novo, lidam muito mal com a liberdade. Um dos grandes mitos
da história política portuguesa apresenta as esquerdas a lutarem pela liberdade
contra o salazarismo. Falso. Absolutamente falso. O PCP e as várias esquerdas
que hoje se encontram no Bloco de Esquerda opunham-se ao Estado Novo mas
queriam chegar ao poder para impor uma ditadura aos portugueses. Seguramente,
mais violenta do que a do Estado Novo. Vejam os regimes políticos que formaram
as nossas esquerdas. No caso do PCP, a União Soviética e Estaline, um dos
maiores facínoras do século XX. Hoje, o PCP ainda apoia regimes como o da
Coreia do Norte. Nunca algum português ouviu os comunistas condenarem Estaline.
Ouvir estes camaradas falar de
liberdade é cómico ou trágico. As esquerdas bloquistas também apoiaram todo o
tipo de ditaduras do proletariado, desde a China de Mao à Albânia. Mais
recentemente, tornaram-se os grandes defensores do regime de Hugo Chávez na
Venezuela. Uma ditadura que levou o país à guerra civil, como estamos a
assistir. Mas a Venezuela tornou-se um dos silêncios mais incómodos da
discussão política portuguesa. Já alguém ouviu os nossos grandes defensores da
“liberdade” denunciarem o regime chavista?
Estas forças políticas, que
apoiaram alguns das ditaduras mais brutais do século XX e que ainda hoje apoiam
os restos desses totalitarismos, estão no poder em Portugal. Sei que muitos já
não levam o PCP e o BE a sério. Desvalorizam as suas doutrinas políticas como
irrealistas, por isso separam o discurso da prática política. Eu levo-os a
sério e acho que aqueles que os desvalorizam mostram alguma ingenuidade, ou
arrogância.
Ainda me preocupo mais porque
muitos traços da cultura antiliberal e antidemocrática, imposta ao nosso país
por cinco décadas de salazarismo, sobreviveram a décadas de democracia. Os
regimes políticos são obviamente diferentes e as diferenças são profundas.
Vivemos numa democracia pluralista e não numa ditadura. A economia de mercado
é, apesar de tudo (já lá iremos), mais livre do que a economia controlada do
Estado Novo. Mais importante, estamos integrados na Europa, e deixámos de ser
uma ilha solitária isolada do resto do mundo. As escolhas de vida são múltiplas
e não subordinadas a uma moral rígida e hipócrita.
Uma das coisas que mais me
irrita nos saudosistas do Estado Novo é a mistura de arrogância com
provincialismo. Mas, apesar da diferença de regimes, a nossa democracia
continua a coexistir com heranças salazaristas. As quais estão bem visíveis nos
dias de hoje.
Veja-se, por exemplo, como o
poder político lida mal com instituições independentes. Se não estivéssemos na
União Europeia, o Banco de Portugal já teria deixado de ser independente há
muito tempo. A presidente do Conselho de Finanças Públicas, Teodora Cardoso
(uma pessoa de esquerda), foi alvo de ataques miseráveis só porque levantou
questões sobre o modo de combater o défice. O Tribunal Constitucional (sim, o
Tribunal Constitucional) foi atacado por dirigentes do PS por ter levantado
dúvidas sobre os gastos nas últimas eleições internas dos socialistas. Estes
são apenas os casos mais visíveis. Mas a tendência controladora alarga-se a
outros níveis do Estado.
As empresas e os institutos
públicos contratam através de concursos viciados e usando critérios políticos
ou de proximidades pessoais. As esquerdas apropriaram-se do Estado. A
geringonça reforça essa apropriação e alarga-a ao BE. A geringonça foi feita
para o PCP preservar o poder dos seus sindicatos e o BE entrar de um modo mais
sistemático no Estado. Hoje, o Estado em Portugal não é neutral nem serve os
interesses dos portugueses. É um Estado socialista ao serviço do poder e da
influência dos partidos de esquerda.
O mais grave é que o país,
tirando um sobressalto aqui e um protesto ali, aceita esta situação. Em
Portugal, não há uma cultura de independência institucional e de resistência ao
arbitrarismo do poder do Estado. E as esquerdas sabem que o país aceita e não
resiste. Por isso, não param na sua conquista do Estado.
A apropriação do aparelho do
Estado para fins partidários e particulares é a mais grave das heranças
salazaristas mas não é a única. A dependência dos grupos empresariais em
relação ao Estado é igualmente um legado do passado que persiste em sobreviver.
Com algumas notáveis excepções, como por exemplo Belmiro de Azevedo e Soares
dos Santos, os empresários portugueses preocupam-se sobretudo em integrar
viagens ministeriais e em serem recebidos pelos primeiros-ministros.
Independentemente das políticas económicas, os apoios políticos da generalidade
dos empresários portugueses resultam do número de visitas a São Bento. Na
relação entre o governo e os empresários, mantém-se muito do que definia o
Estado Novo.
Quando nos aproximamos de mais
um 25 de Abril, 43 anos depois da Revolução de 1974, há heranças preocupantes
do Estado Novo que vivem entre nós. Ao contrário do que diz o discurso oficial
do nosso regime, as esquerdas são as que mais beneficiam dessas heranças. Até
porque as direitas cada vez que tenham a mesma tentação são imediatamente acusadas
de “fascistas” e recuam. Mais: as esquerdas fazem o que for necessário para
preservar as heranças salazaristas na medida em que servem o seu poder.
Eis uma das grandes ironias do
pós-25 de Abril. Se a nossa democracia não se afastou mais do Estado Novo foi
por responsabilidade das esquerdas. Não foi por causa das direitas. Muitos
dirão que as heranças que apontei não têm nada a ver com o Estado Novo, mas sim
com a natureza do país e dos portugueses. Mais uma herança do salazarismo. Era
o que dizia Salazar para impedir a democratização e a abertura de Portugal.
Título e Texto: João Marques de Almeida, Observador,
23-4-2017
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