segunda-feira, 8 de maio de 2017

As formas únicas de Umberto Boccioni

Adriano Nunes da Costa


 “A arte só é vital quando integrada em seu meio”
Manifesto dos Pintores Futuristas (1910)

Com essas palavras, o artista plástico Umberto Boccioni (Itália, 1882-1916), em conjunto com outros grandes nomes de seu tempo, imprimiu na pedra de toque da arte a linha geral que não só inspiraria o pensamento futurista italiano – do qual fez parte e cuja existência auxiliou a legitimar enquanto teórico e participante ativo do movimento -, como também determinaria a condução do seu próprio processo criativo ao longo de sua vida.

Boccioni nasceu no final do século XIX e viveu sua mocidade em uma época de rápidos avanços tecnológicos. A presença dos aviões começava a se notar nos céus; nas cidades, o cotidiano era gradualmente readaptado para lidar com a emergência dos automóveis e a agitação dos primeiros arranha-céus; e os aprimoramentos na geração e distribuição da energia elétrica estimulavam a vida noturna tanto das metrópoles quanto das zonas rurais, iluminando as noites e as tornando cada vez mais movimentadas.

Procurando honrar o princípio futurista – de trazer para os campos da arte o aspecto mais cinético da vida moderna -, o pintor e escultor italiano voltou-se para essa efervescência dinâmica e avassaladora da era moderna, que parecia aflorar o que há de mais inconstante na própria existência, e daí, extraiu a inspiração que o motivou a retratar, em grande parte do rol de suas obras, o movimento e a ideia da turbulência inerente à vida.

“Propomo-nos a (…) interpretar e glorificar a vida de hoje, incessante e tumultuosamente
transformada pelas vitórias da ciência…”
Manifesto dos Pintores Futuristas (1910)

A rápida evolução do mundo ecoava em Boccioni e o fascinava. Se antes esse mundo parecia assentado de tal forma em costumes e tradições que o engessavam, estagnando-o ao ponto da previsibilidade, agora acelerava-se pelo progresso (em suas mil variantes) em um turbilhão de formas e cores, rompendo com antigos paradigmas e assumindo novos padrões apreensíveis somente pela duração de um piscar de olhos, antes de se modificarem em novos arranjos tão fugazes quanto os que os antecederam.

Esse frenesi elétrico, motriz e rearranjador, que reduz a vultos a nitidez dos traços do objeto pela rapidez de sua transformação, foi pelo artista retratado em diversos quadros e de diferentes maneiras, mas possivelmente, encontrou sua expressão mais literal nos quadros Dinamismo de um Jogador de Futebol e Dinamismo de um Ciclista – verdadeiras visualizações gráficas desse conceito, em muito similares ao que apenas posteriormente seria igualado pela computação.

Umberto Boccioni, Dinamismo de um jogador de futebol, 1913

Umberto Boccioni, Dinamismo de um ciclista, 1913
Se a jóia recebe o valor do metal ou da pedra que a confecciona, a uma obra de arte pode-se igualmente creditar, à notabilidade de sua essência, uma macia porção de mérito ao material que a constitui e a edifica aos olhos do público. Não poderia ser diferente com uma das mais notáveis obras de Boccioni: ciente das limitações do pincel e da tela enquanto implementos de comunicação da sua visão artística, ele procurou não nas tintas, mas no gesso¹, as propriedades necessárias ao material que melhor poderia instrumentalizar a mensagem que desejava trazer ao mundo com Formas Únicas de Continuidade no Espaço, talvez sua mais conhecida escultura atualmente.

Umberto Boccioni, Formas Únicas de Continuidade no Espaço, 1913
De linhas anguladas que evocam a fluidez e leveza quase insubstanciais de uma figura humana em movimento, a escultura se comunica física e meta-linguisticamente com os que tentam entender sua complexidade visual. A superfície sólida pré-cinzelada e informe do gesso original, pela mão de Boccioni, transfigurou-se em um arrojado semblante de notável aerodinâmica, que dirime a bruteza de sua constituição com a suavidade de uma aparência melíflua, que parece dançar ao sabor da mesma brisa contra a qual se desloca, obstinadamente.

Com isso, o elemento estático da matéria, tão inerente às esculturas, é então subvertido pelo dinamismo etéreo de sua plasmagem, que remete a um efeito de moção recém-interrompido: como se os padrões que enxergássemos em Formas tivessem se solidificado em algo discernível tão somente após a fixação do nosso olhar. Fértil tal como é, a imaginação permite supor que essa efêmera e frágil constância teria a capacidade de se desfazer tão logo se afaste o observador, cedendo lugar a novos e imprevisíveis arranjos que somente a aleatoriedade poderia produzir.

Semelhar Formas a um estado quântico – igualmente sensível à presença de um observador – materializado parece não se afastar em demasia das intenções originais do escultor, que se percebia um entusiasta do progresso e das inovações que nos permitem vislumbrar mais próximo o horizonte do futuro; e, ao mesmo tempo, é um artifício que permite aproximá-la, igualmente, do cientificismo que amplia o escopo de interpretações a seu respeito.

Supondo que se encare a escultura tão somente como uma representação física da ideia do movimento, uma outra noção lhe seria então pertinente, senão ancilar: a do tempo. A mobilidade só pode ser percebida em função de uma percepção cronológica que o acompanhe, de modo que convergem em um só horizonte o deslocamento físico e o temporal do objeto.

Ao trabalhar com o movimento, Boccioni concilia também a operação do tempo; e como consequência dessa ambivalência, Formas pode também ser encarada como uma escultura que não apenas transcende o sólido da matéria para a leveza das formas, mas também que atravessa dimensões, nos aproximando nesse ínterim da própria noção do tempo-espaço, para transmitir ao seu apreciador tanto a interligação do tempo, do momento e do movimento, quanto a essencialidade definidora dessa tríplice tornada una para o universo do qual fazemos parte.
Título, Imagens e Texto: Adriano Nunes da Costa, publicado originalmente em www.plastiamagazine.com.br em 5 de maio de 2017 
¹ Cópias subsequentes da estátua foram confeccionadas em bronze. Uma se encontra no MASP – Museu de Arte de São Paulo.

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