sábado, 13 de maio de 2017

Relógio é ofensa

João Pereira Coutinho

Era Winston Churchill, creio, quem dizia que a falta de pontualidade era um hábito vil. Churchill nunca conheceu o Brasil. No Brasil, não é a falta de pontualidade que é um hábito vil. É a própria pontualidade.

Aprendi a lição à minha custa, depois de vexames sem fim: alguém me convidava para jantar lá em casa às oito da noite. Eu aparecia às oito (com vinho, com flores). A anfitriã recebia-me à porta e, com cara de quem presenciara uma catástrofe, disparava: ‘Ué, você veio tão cedo?’ E depois acrescentava que:

a) O jantar só era às oito (sic);
b) A casa não estava arrumada;
c) O jantar não estava pronto;
d) Ela não estava pronta;
e) Os convidados ainda não tinham chegado.

Mas chegavam. Pelas dez, onze, alguns à meia-noite, perguntando se não tinham chegado demasiado cedo. Por estas alturas, eu já dormia a um canto. De cansaço e vergonha. Desconfio que, algures pela casa, alguém conspirava contra mim:
- Sabes que eu disse ao português para ele chegar às oito e ele chegou mesmo às oito?
- A sério?
- A sério. Ele deve ter algum problema…

No Brasil, um jantar às oito não é propriamente um jantar às oito. ‘Oito da noite’ é uma indicação vaga que significa simplesmente ‘depois do pôr-do-sol’. Uma espécie de celebração naturalista que, em certos casos, nem sequer necessita de uma hora. A marcação do  jantar fica dependente de um ‘mail logo’. E quando nós, europeus obsessivos e pontuais, perguntamos ‘mas logo, quando?’, alguém reitera: ‘às oito’.

A solução, acreditem, é juntar duas horas à hora marcada. Um jantar às oito é um jantar às dez. Um almoço ao meio-dia começa, em princípio, às duas da tarde. Tomar uma cerveja no bar não é às quatro; é às seis. Toda a gente sabia disso. Menos eu.

Por isso estranho a polêmica em torno do apresentador Luciano Huck, que teve o seu Rolex roubado em São Paulo. Huck não gostou e pede soluções radicais para combater a criminalidade na cidade. Entendo Huck. Eu próprio já fui roubado em São Paulo com uma arma apontada à cabeça. E no lobby do hotel. Não é agradável. Mas pergunto se não houve alguma justiça no roubo do seu Rolex.

Não concordo com algumas opiniões publicadas que acusaram Huck de exibicionismo deslocado, como se a vítima fosse culpada por ser vítima. Eu próprio ouvi em São Paulo confissões de vítimas que desculpavam os assaltantes com as teses mais inacreditáveis.
‘Eu estava bem vestido naquele dia.’
‘A culpa é minha, eu tinha tomado banho.’
‘Eu mereço, eu vivo em São Paulo.’

A culpa de Huck está no simples fato de usar relógio, sobretudo num país onde o relógio é uma ofensa para a cultura local. É como usar uma t-shirt de George Bush em Caracas. Ler a Playboy em Teerão. Ser heterossexual em São Francisco.

Ou ser um português nos trópicos. Esqueçam os bandidos tradicionais. Roubar um relógio, no Brasil, não é crime vulgar; é afirmação de identidade. O meu conselho a Luciano Huck é que ele procure o seu Rolex na casa da minha anfitriã paulistana. Ela não gosta de pontualidade.
Título e Texto: João Pereira Coutinho, Folha de S. Paulo, 15-10-2007, in ‘Avenida Paulista’, Edições Quasi, maio de 2008, páginas 89, 90 e 91. 
Digitação: JP

Um comentário:

  1. “Também sou escritor quando não escrevo; e um escritor que não escreve é de fato uma quimera que provoca a loucura.” Franz Kafka
    Quando não tenho o que escrever, não faço nem fofoca.
    Relógio e Rolex ainda por cima para mim na época do GPS e do celular é ostentação, aliás quando me aposentei em 2000 dispensei os dois;
    Relógio e celular, já basta o tempo que fui escravo do trabalho, do uniforme, e destas duas bestas.

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