Paulo Tunhas
Por complexa e contraditória que seja a
sociedade israelita, a resistência à permanente ameaça existencial do
terrorismo nunca sofre daquela forma peculiar de resignação disfarçada de
não-resignação.
Sadiq Khan, o mayor de
Londres, declarou no ano passado que estar preparado para conviver com
atentados terroristas é parte integrante da vida numa grande cidade. Esta
terrível confissão de impotência está longe de ser absurda. Sinal dos tempos,
ela é menos absurda a cada dia que passa. A frequência dos ataques do
terrorismo islâmico parece justificá-la. Ninguém, é claro, o teria dito no
passado a propósito do terrorismo do IRA, da ETA, das Brigadas Vermelhas ou do
grupo Baader-Meinhof. Por múltiplas razões, nesses vários casos podia-se
aspirar a um fim, e aspirar a um fim era incompatível com qualquer princípio de
habituação. Não nos podíamos habituar, porque o hábito seria afim da
capitulação.
Com o terrorismo islâmico não
é assim. Dada a sua natureza, dada a extensão da sua base, dada a forma como a
sua gestação foi, e continua a ser, tolerada e dada a incompatibilidade radical
dos seus motivos com a nossa maneira de pensar e viver, o seu espírito de
conquista, não há fim concebível à vista. Sadiq Khan tem, à sua maneira, razão.
O terrorismo islâmico passou a fazer parte das nossas vidas como uma ameaça
existencial permanente. Pelo menos na Europa. Provavelmente nos Estados Unidos
não será assim.
Resta saber como conceber tal
habituação. Há duas possibilidades. A primeira consiste num hábito conformado.
A polícia e os restantes organismos competentes fazem o que podem, os atentados
vão-se sucedendo, e a cada novo atentado vamo-nos repetindo que não podemos ter
medo. Acrescenta-se normalmente que ter medo é fazer o jogo dos terroristas.
Devemos é continuar a viver como sempre vivemos. O problema é que essa atitude,
que suponho ser a recomendada por Sadiq Khan, e que é certamente a que
transpira no grosso dos discursos políticos e na opinião generalizada de
jornais e televisões, contém em si qualquer coisa de irreal. Insensivelmente,
ela aproxima-se de resignação. As palavras lindas sobre a necessidade de não
ter medo são, pelo menos em parte, uma forma de assobiar no escuro. A cada “não
podemos ter medo”, o medo vai-se tornando uma cada vez mais profunda segunda
natureza, e ainda por cima uma segunda natureza que as palavras tudo fazem para
que nos permaneça inconsciente.
Há, no entanto, uma outra habituação,
mas desta vez inconformada, aquela que observamos em Israel. Por mais complexa
e contraditória que seja a sociedade israelita, a resistência à permanente
ameaça existencial do terrorismo não sofre nunca daquela forma peculiar de
resignação disfarçada de não-resignação que a todo o momento se manifesta entre
nós nos discursos sobre o medo e sobre o “fazer o jogo” dos terroristas. A
questão de “fazer o jogo” não se coloca e Israel não se pode permitir o
terrível luxo de vítimas que nós podemos, a normalidade de que falava Sadiq
Khan. As coisas são declaradamente olhadas de frente, sem deixar que o véu das
palavras tolde demasiado a nossa percepção da realidade. Não é agradável? Pode
não ser: mas salva vidas.
É claro que, sob muitos
aspectos, as diferenças entre Israel e a Europa são abissais. O minúsculo
território de Israel (muito pouco espaço para muita história, como alguém
disse) não é o da vasta Europa. Não há no fundamento da Europa a perpétua
presença da memória do Holocausto, que corresponde ao elemento decisivo da
fundação de Israel. Os perigos que rodeiam Israel são muito mais presentes do
que os nossos. A própria natureza do terrorismo islâmico obedece em Israel a
condições em parte (não totalmente: em parte) distintas das europeias. E por aí
adiante.
Há, no entanto, algo de
perfeitamente comum entre as duas situações. Em ambos os casos, lidamos com
democracias que procuram preservar o seu modo de viver, o seu pluralismo, o
império da lei e a defesa da liberdade individual face à ameaça do terror
islâmico, isto é, face a um extraordinário ressurgir do mais absoluto arcaísmo
que se apoia, entre outras coisas, no retorno a uma dimensão pré-política da
existência social humana. E essa comunidade de situação entre Israel e a Europa
é tudo menos despicienda. É o essencial do essencial. A manutenção da
comunidade política contra as tentativas de retorno a um modo pré-político de
viver é a questão essencial.
De resto, desde há muito que é
lícito ver em Israel um concentrado dos problemas que afligem os europeus. A
defesa de Israel e a defesa da Europa partilham, quaisquer que sejam as
diferenças antes mencionadas, pontos comuns que, não fosse a espessa barreira
retórica em que nos habituamos a viver, saltariam aos olhos dos mais míopes.
Pela negativa, que é o modo mais simples, isso é óbvio. Entre nós, europeus,
todos aqueles que insistem na necessária “compreensão” dos atos do terrorismo
islâmico coincidem, quase sem falhas, com aqueles que militam a favor da
destruição de Israel, quaisquer que sejam as roupagens verbais com que vestem o
seu pensamento. E não apenas a “compreensão” do terrorismo. O desprezo pela
democracia também. Os que veem as democracias liberais como algo que deve ser
substituído por outro modelo político são igualmente aqueles a quem a pura e
simples existência de Israel parece condenável.
Agora, será possível entre nós
o tipo de atitude face ao terror idêntica à dos israelitas? As dúvidas são
legítimas e imensas. As nossas sociedades podem sobreviver sem aquele tipo de
atitude. Israel, obviamente, não poderia. Sobreviveu, e sobrevive, nessa
estrita condição. Não nós. A Inglaterra permitiu durante um tempo imenso, e
ainda permite, as mais inconcebíveis pregações islâmicas no seu território.
Melanie Phillips publicou em 2006 um livro célebre sobre o “Londonistão”: é
arrepiante. Não só pelo que conta dos islamistas como pelo que narra da mais do
que extravagante complacência das autoridades. A tradição, de resto, vem de
longe. Lenine e os outros bolcheviques tinham Londres como lugar ideal para as
suas reuniões durante muito tempo antes de 1917. Motivo? Nunca a polícia
minimamente os incomodava.
Mas se uma atitude como a de
Israel não é inevitável para a sobrevivência da Europa, convém não exagerar no
sentido oposto. O hábito conformado de Sadiq Khan pode conduzir à eleição de
gente como Corbyn, com um longo historial de “compreensão” de vários
terrorismos e de pactuação com antissemitismos sortidos. Por acaso, estou muito
longe de acreditar nessa possibilidade passar à realidade: a apostar, apostava
que Theresa May vai ganhar com maioria absoluta. Mas a existência da simples
possibilidade assusta.
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