João Pereira Coutinho
Simpatizo com George Clooney.
Existe ali a aura do cinema clássico e uma consciência ´liberal’ que, ao
contrário de Michael Moore, não horroriza. Por isso vejo, com prazer moderado, Good Night and Good Luck, exercício
acadêmicoa, em tom documental, sobre a luta entre Joseph McCarthy, que entre
1950 e 1955 soltou os cães contra o comunismo na América. Curioso: em em 1950,
caçavam-se comunistas mas os fumadores eram deixados em paz. Sessenta anos
depois, é o contrário. Evolução.
Esclarecimento prévio: caçar
comunistas não é desporto de gente civilizada. Alger Hiss ou o casal Rosenberg
eram a prova viva de que em 1950 a espionagem soviética existia e persistia nos
Estados Unidos? É um fato. Como também é um fato que, em perspectiva,
Washington perseguia os dissidentes, mas Moscovo os fuzilava. E daí? Nada disto
altera o essencial. E o essencial foram centenas de vidas que um alcoólico demente, McCarthy, foi
perseguindo, e até destruindo, com histérica ferocidade. Acabou mal e acabou
cedo, aos 47 anos. Mas o mal maior já estava feito. Tarde demais.
Mas se Joseph McCarthy caçou
comunistas na década de 50, não deixa de ser irônico que o caminho para
McCarthy tenha contado com a ‘colaboração’, no duplo sentido do termo, do
dramaturgo Bertolt Brecht [foto], que em 1947 deu contributo decisivo para destruir a
última barreira da decência. A história não é ‘oficial’ e as consciências
‘liberais’ nunca conviveram bem com ela. Ou, então, desconhecem os contornos.
Sugestão bibliográfica: o livrinho magistral que a escritora Patricia Bosworth
publicou há uns anos pela Simon & Schuster e que leio agora com admiração e
pasmo. Título: Anything Your Little Heart
Desires. ‘Corny’, sim. Mas a leitura é tudo, menos.
Que nos conta Bosworth com
erudição (muita) e elegância (idem)? O livro, que no essencial é uma história
de família (mais precisamente sobre o pai, Bartley Crum, famoso advogado),
revisita a primeira caçada em Hollywood, três anos antes de McCarthy chegar à
Comissão das Atividades Anti-Americanas. A ‘ameaça vermelha’ estaria
disseminada pela indústria do cinema? Parnell Thomas, um antecessor de
McCarthy, acreditava que sim. Aliás, não só acreditava como era firmemente
assegurado sobre o assunto por ‘testemunhas amigáveis’, como Reagan, Disney ou
Ayn Rand, que nomeavam nomes em sessões de delação pública.
Mas a Comissão não se
alimentou apenas de ‘testemunhas amigáveis’. O momento crucial desta primeira
perseguição ‘mediática’ acabaria por chegar com dezenove testemunhas menos
‘amigáveis’, ou mais propriamente ‘hostis’, que seriam intimadas a depor
perante Parnell Thomas. Entre elas estavam os realizadores Edward Dmytryk,
Lewis Milestone ou Robert Rossen; o ator Larry Parks, que fora Al Jolson em biopic célebre um ano antes; Howard
Koch, um dos argumentistas de Casablanca;
e, claro, Bertolt Brecht, exilado nos Estados Unidos, depois da fuga da
Alemanha nazi em 1933. Nasciam, enfim, os ‘Hollywood Nineteen’.
Patricia Bosworth explica, com
uma arrasadora simplicidade, que a estratégia de defesa dos dezenove, de que o
pai fazia parte, se esforçou, desde o início, por denunciar a natureza
inconstitucional da Comissão. Pergunta: Parnell Thomas desejava saber, como
McCarthy depois dele, se os dezenove eram, ou tinham sido, membros do Partido
Comunista? Resposta da defesa: isso violava a Primeira Emenda, que garantia
liberdade de expressão e crença. A única forma de derrotar Parnell Thomas era
não responder às suas questões. O silêncio dos dezenove retiraria à Comissão a
sua legitimidade e, caso perdessem, o Supremo Tribunal, largamente dominado por
uma sensibilidade mais ‘liberal’, faria o resto. Os dezenove subscreveram a
estratégia da defesa: matar a Comissão logo à nascença.
Subscreveram e aplicaram. As
dez primeiras testemunhas ‘hostis’, como Dmytryk ou Ring Lardner Jr., foram
ouvidas pela Comissão. Não colaboraram, ou seja, naõ responderam a uma pergunta
eminentemente inconstitucional. Mas o desastre chegaria com Brecht, a décima
primeira a ser ouvida. Ao contrário das dez testemunhas anteriores, Brecht
colaborava e respondia, ou seja, destroçava a estratégia central da defesa.
Mais: não apenas respondia como tratava de sublinhar, em plena audiência, a
grande diferença que o separava dos dez que o precederam.
Brecht saiu em aplausos (de
Parnell Thomas) e, no dia seguinte, regressava à Europa. Conta o historiador
Paul Johnson, num trabalho notável sobre a ética dos ‘intelectuais’, que ao
desembarcar em Paris o espirituoso Brecht ainda fez uma piada sobre o assunto.
‘Quando me acusaram de tentar roubar o Empire State Building’, afirmou Bertold,
‘achei que era altura de partir’. Todos riram.
Todos, com a exceção dos que
ficaram em Washington. Na verdade, depois de Brecht, a Comissão resolveu
terminar abruptamente os seus trabalhos. Os primeiros dez a ser ouvidos – como
Ring Lardner Jr. ou o realizador Lester Cole – acabariam condenados e presos.
Mas esta é a parte ‘menor’ da história. A parte maior é que as ‘listas negras’
começavam em força. Precisamente com os primeiros dez, que a indústria resolveu
sacrificar como exemplo. O caminho estava definitivamente aberto para que
Joseph McCarthy inaugurasse um dos episódios mais grotescos da história moderna
americana.
Como escreve Patricia
Bosworth, a história da ‘caça às bruxas’ é uma história com poucos heróis.
Dmytryk ou Rossen, depois da experiência ‘hostil’, acabariam por regressar como
‘testemunhas amigáveis’; Bartley Crum [foto], advogado dos dezenove e pai da autora,
fez o mesmo ao denunciar colegas de ofício (Crum acabaria por suicidar-se em
1959; as páginas de Bosworth sobre a delação do pai valem o livro); e aqueles
que não acabaram na miséria, esconderam-se no anonimato. É o caso de Dalton
Trumbo, que ganharia um Óscar como ‘Robert Rich’ (por The Brave One, 1957) e só em 1960, por pressão de Otto Preminger e
Stanley Kubrick, teria o seu nome real nos créditos de Exodus e Spartacus.
E Bertolt Brecht? Regressado à
Europa, Brecht continuaria uma notável carreira em nome das classes exploradas,
denunciando o ‘capitalismo’ americano e a hipocrisia da sua sociedade ‘materialista’.
Na triste história da ‘caça às
bruxas’, as boas noites de Brecht simplesmente nunca existiram. Ou, se
existiram, desconfio que dificilmente veremos um filme de Clooney sobre o
assunto.
Título e Texto: João Pereira Coutinho, Folha de S.
Paulo, 6-3-2006, in ‘Avenida Paulista’, Edições Quasi, maio de 2008, páginas 144,
145 e 146.
Digitação: JP
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