sábado, 3 de junho de 2017

As boas noites de Brecht

João Pereira Coutinho

Simpatizo com George Clooney. Existe ali a aura do cinema clássico e uma consciência ´liberal’ que, ao contrário de Michael Moore, não horroriza. Por isso vejo, com prazer moderado, Good Night and Good Luck, exercício acadêmicoa, em tom documental, sobre a luta entre Joseph McCarthy, que entre 1950 e 1955 soltou os cães contra o comunismo na América. Curioso: em em 1950, caçavam-se comunistas mas os fumadores eram deixados em paz. Sessenta anos depois, é o contrário. Evolução.

Esclarecimento prévio: caçar comunistas não é desporto de gente civilizada. Alger Hiss ou o casal Rosenberg eram a prova viva de que em 1950 a espionagem soviética existia e persistia nos Estados Unidos? É um fato. Como também é um fato que, em perspectiva, Washington perseguia os dissidentes, mas Moscovo os fuzilava. E daí? Nada disto altera o essencial. E o essencial foram centenas de vidas  que um alcoólico demente, McCarthy, foi perseguindo, e até destruindo, com histérica ferocidade. Acabou mal e acabou cedo, aos 47 anos. Mas o mal maior já estava feito. Tarde demais.

Mas se Joseph McCarthy caçou comunistas na década de 50, não deixa de ser irônico que o caminho para McCarthy tenha contado com a ‘colaboração’, no duplo sentido do termo, do dramaturgo Bertolt Brecht [foto], que em 1947 deu contributo decisivo para destruir a última barreira da decência. A história não é ‘oficial’ e as consciências ‘liberais’ nunca conviveram bem com ela. Ou, então, desconhecem os contornos. Sugestão bibliográfica: o livrinho magistral que a escritora Patricia Bosworth publicou há uns anos pela Simon & Schuster e que leio agora com admiração e pasmo. Título: Anything Your Little Heart Desires. ‘Corny’, sim. Mas a leitura é tudo, menos.

Que nos conta Bosworth com erudição (muita) e elegância (idem)? O livro, que no essencial é uma história de família (mais precisamente sobre o pai, Bartley Crum, famoso advogado), revisita a primeira caçada em Hollywood, três anos antes de McCarthy chegar à Comissão das Atividades Anti-Americanas. A ‘ameaça vermelha’ estaria disseminada pela indústria do cinema? Parnell Thomas, um antecessor de McCarthy, acreditava que sim. Aliás, não só acreditava como era firmemente assegurado sobre o assunto por ‘testemunhas amigáveis’, como Reagan, Disney ou Ayn Rand, que nomeavam nomes em sessões de delação pública.

Mas a Comissão não se alimentou apenas de ‘testemunhas amigáveis’. O momento crucial desta primeira perseguição ‘mediática’ acabaria por chegar com dezenove testemunhas menos ‘amigáveis’, ou mais propriamente ‘hostis’, que seriam intimadas a depor perante Parnell Thomas. Entre elas estavam os realizadores Edward Dmytryk, Lewis Milestone ou Robert Rossen; o ator Larry Parks, que fora Al Jolson em biopic célebre um ano antes; Howard Koch, um dos argumentistas de Casablanca; e, claro, Bertolt Brecht, exilado nos Estados Unidos, depois da fuga da Alemanha nazi em 1933. Nasciam, enfim, os ‘Hollywood Nineteen’.

Patricia Bosworth explica, com uma arrasadora simplicidade, que a estratégia de defesa dos dezenove, de que o pai fazia parte, se esforçou, desde o início, por denunciar a natureza inconstitucional da Comissão. Pergunta: Parnell Thomas desejava saber, como McCarthy depois dele, se os dezenove eram, ou tinham sido, membros do Partido Comunista? Resposta da defesa: isso violava a Primeira Emenda, que garantia liberdade de expressão e crença. A única forma de derrotar Parnell Thomas era não responder às suas questões. O silêncio dos dezenove retiraria à Comissão a sua legitimidade e, caso perdessem, o Supremo Tribunal, largamente dominado por uma sensibilidade mais ‘liberal’, faria o resto. Os dezenove subscreveram a estratégia da defesa: matar a Comissão logo à nascença.

Subscreveram e aplicaram. As dez primeiras testemunhas ‘hostis’, como Dmytryk ou Ring Lardner Jr., foram ouvidas pela Comissão. Não colaboraram, ou seja, naõ responderam a uma pergunta eminentemente inconstitucional. Mas o desastre chegaria com Brecht, a décima primeira a ser ouvida. Ao contrário das dez testemunhas anteriores, Brecht colaborava e respondia, ou seja, destroçava a estratégia central da defesa. Mais: não apenas respondia como tratava de sublinhar, em plena audiência, a grande diferença que o separava dos dez que o precederam.

Brecht saiu em aplausos (de Parnell Thomas) e, no dia seguinte, regressava à Europa. Conta o historiador Paul Johnson, num trabalho notável sobre a ética dos ‘intelectuais’, que ao desembarcar em Paris o espirituoso Brecht ainda fez uma piada sobre o assunto. ‘Quando me acusaram de tentar roubar o Empire State Building’, afirmou Bertold, ‘achei que era altura de partir’. Todos riram.

Todos, com a exceção dos que ficaram em Washington. Na verdade, depois de Brecht, a Comissão resolveu terminar abruptamente os seus trabalhos. Os primeiros dez a ser ouvidos – como Ring Lardner Jr. ou o realizador Lester Cole – acabariam condenados e presos. Mas esta é a parte ‘menor’ da história. A parte maior é que as ‘listas negras’ começavam em força. Precisamente com os primeiros dez, que a indústria resolveu sacrificar como exemplo. O caminho estava definitivamente aberto para que Joseph McCarthy inaugurasse um dos episódios mais grotescos da história moderna americana.

Como escreve Patricia Bosworth, a história da ‘caça às bruxas’ é uma história com poucos heróis. Dmytryk ou Rossen, depois da experiência ‘hostil’, acabariam por regressar como ‘testemunhas amigáveis’; Bartley Crum [foto], advogado dos dezenove e pai da autora, fez o mesmo ao denunciar colegas de ofício (Crum acabaria por suicidar-se em 1959; as páginas de Bosworth sobre a delação do pai valem o livro); e aqueles que não acabaram na miséria, esconderam-se no anonimato. É o caso de Dalton Trumbo, que ganharia um Óscar como ‘Robert Rich’ (por The Brave One, 1957) e só em 1960, por pressão de Otto Preminger e Stanley Kubrick, teria o seu nome real nos créditos de Exodus e Spartacus.

E Bertolt Brecht? Regressado à Europa, Brecht continuaria uma notável carreira em nome das classes exploradas, denunciando o ‘capitalismo’ americano e a hipocrisia da sua sociedade ‘materialista’.

Na triste história da ‘caça às bruxas’, as boas noites de Brecht simplesmente nunca existiram. Ou, se existiram, desconfio que dificilmente veremos um filme de Clooney sobre o assunto. 
Título e Texto: João Pereira Coutinho, Folha de S. Paulo, 6-3-2006, in ‘Avenida Paulista’, Edições Quasi, maio de 2008, páginas 144, 145 e 146. 
Digitação: JP

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