João Pereira Coutinho
Ninguém escreve memórias ou
diários por prazer intelectual. Falo de escritores, artistas e outros
profissionais, não da menina anônima que todas as noites resolve contar os seus
amores e angústias nas páginas do ‘querido diário’. E ninguém escreve
inocentemente porque, como lembrou o historiador Paul Johnson no clássico Intelectuals, a escrita memorialista é
uma forma indireta de responder a críticos, amigos ou inimigos. Pièces justificatives, escreve Johnson,
reconhecendo no defunto o privilégio da palavra final. Eis o supremo egoísmo do
criador ausente: responder aos vivos diretamente da terra dos mortos.
Aconteceu com o centenário da
morte de Elias Canetti [foto] (1905 – 1994), Prémio Nobel de Literatura em 1981
(inexplicável), autor de Auto-de-Fé
(escrito aos 25 anos e a sua melhor obra) e de um tratado imensamente débil (e
intensamente lido) intitulado Massa e
Poder (1960).
Canetti, como qualquer
profissional do ramo, armadilhou bem a sua posteridade ao marcar encontros
futuros com os leitores. Para começar, novas obras só seriam editadas oito anos
depois da morte, estabeleceu Canetti. Ou seja, depois de 2002. E, para
terminar, os documentos mais pessoais do escritor só estarão disponíveis em
2024. Tremo só de pensar no que Canetti escreveu nos textos mais íntimos. Este Party in the Blitz,
quarto volume das suas memórias, agora editado postumamente no Reino Unido,
permite adivinhar o pior.
Party in the Blitz revisita os 40 anos de exílio inglês, Canetti,
pobre e intelectualmente imaturo, desembarca em Londres vindo da Áustria,
corria 1939. Com a mulher, Veza, um hino à santidade e uma escritora de
talento, que sacrificou a vida (e a obra) para servir o Mestre. O livro, um
conjunto de ´retratos’, quase crônicas, sem comprovar o profundo ódio de
Canetti pelo país de acolhimento. O ódio, em Canetti, não é apenas um traço de
caráter. É uma forma de afirmação pessoal, marca evidente de um intelecto pouco
civilizado. Que estas memórias tenham sido escritas aos 85 anos, quando a
velhice alegadamente costuma distribuir uns pós de sabedoria pelos seres
humanos, eis um pormenor que torna esta obra duplamente triste e fracassada.
As palavras mais simpáticas do
autor são dirigidas aos seus companheiros de exílio, como Franz Steiner, o
antropólogo de Oxford que sai de Party in
the Blitz com a reputação intacta. Inevitável: Steiner morreu jovem e, além
disso, não representa nenhuma sombra para a figura monumental de Canetti. O
resto é dispensável e não merece do gigante uma palavra de admiração. Nos
séculos XVII, XVIII ou XIX, a Inglaterra tinha Shakespeare, Swift, Keats ou
Blake. Sobretudo Blake. No século XX, não tem ninguém, com a evidente exceção
de Canetti. T.S. Eliot não existe. Ou, quando existe, é para comprovar a
irredutível mediocridade da literatura inglesa contemporânea. Evelyn Waugh,
Graham Greene ou Anthony Powell nem aparecem no retrato. E Iris Murdoch [foto], amante de
Canetti (a mulher, Veza, sabia de tudo e preparava chá e bolinhos para os
três), é figura intelectualmente débil (fato), com corpo repulsivo
(desconheço).
Claro que nada disto impedia
Canetti de cumprir o seu calvário com Murdoch (uma tumba incapaz de soltar um
único gemido durante o ato). O leitor já sabia que Canetti era um gênio. Não
sabia ainda que era um gênio, um masoquista e um benemérito.
E ao fim de 40 anos, o que tem
Canetti a dizer sobre o seu país de acolhimento? O óbvio: os ingleses são
frios/arrogantes/distantes [riscar o que não interessa]. Bombardeados pelos
nazis, continuavam tranquilamente nas suas festas, como se o mundo exterior não
existisse (daí o título do presente livro). Curiosamente, Canetti não entende
que foi precisamente essa frieza, essa arrogância e essa distância que permitiu
a um povo sobreviver durante a blitz.
Como também não entende, na sua seriedade provinciana de intelectual
tipicamente Mittleeuropean, que a
frieza, a arrogância e a distância dos ingleses são a fonte da sua excentricidade
– a mais importante contribuição cultural da Inglaterra ao mundo.
O exílio termina com a chegada
de Margaret Thatcher ao poder. A Suíça seria para Canetti a sua última paragem.
Para o escritor, Thatcher representa o filistinismo insuportável e o crepúsculo
de uma cultura superior, que ele experimentara durante quatro décadas. Uma
contradição, claro: se a Inglaterra já estava moribunda em 1939 (na chegada),
não se entende como ficou moribunda em 1980 (na partida). A menos que a
milagrosa presença de Canetti tenha ressuscitado o cadáver por uns tempos.
Possível. Provável. Quem disse, afinal, que o Messias só visitara Lázaro uma vez?
Título e Texto: João Pereira Coutinho, Folha de S. Paulo,
17-9-2005, in ‘Avenida Paulista’, Edições Quasi, maio de 2008, páginas 147, 148
e 149.
Digitação: JP
ELIAS CANETTI, O GRANDE IMBECIL BIBLICO-IDIOTA, METIDO A "ESCRITOR"!! É UM "BOM" LIXO!
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