quinta-feira, 8 de junho de 2017

O ódio de Canetti

João Pereira Coutinho

Ninguém escreve memórias ou diários por prazer intelectual. Falo de escritores, artistas e outros profissionais, não da menina anônima que todas as noites resolve contar os seus amores e angústias nas páginas do ‘querido diário’. E ninguém escreve inocentemente porque, como lembrou o historiador Paul Johnson no clássico Intelectuals, a escrita memorialista é uma forma indireta de responder a críticos, amigos ou inimigos. Pièces justificatives, escreve Johnson, reconhecendo no defunto o privilégio da palavra final. Eis o supremo egoísmo do criador ausente: responder aos vivos diretamente da terra dos mortos.

Aconteceu com o centenário da morte de Elias Canetti [foto] (1905 – 1994), Prémio Nobel de Literatura em 1981 (inexplicável), autor de Auto-de-Fé (escrito aos 25 anos e a sua melhor obra) e de um tratado imensamente débil (e intensamente lido) intitulado Massa e Poder (1960).


Canetti, como qualquer profissional do ramo, armadilhou bem a sua posteridade ao marcar encontros futuros com os leitores. Para começar, novas obras só seriam editadas oito anos depois da morte, estabeleceu Canetti. Ou seja, depois de 2002. E, para terminar, os documentos mais pessoais do escritor só estarão disponíveis em 2024. Tremo só de pensar no que Canetti escreveu nos textos mais íntimos. Este Party in the Blitz, quarto volume das suas memórias, agora editado postumamente no Reino Unido, permite adivinhar o pior.

Party in the Blitz revisita os 40 anos de exílio inglês, Canetti, pobre e intelectualmente imaturo, desembarca em Londres vindo da Áustria, corria 1939. Com a mulher, Veza, um hino à santidade e uma escritora de talento, que sacrificou a vida (e a obra) para servir o Mestre. O livro, um conjunto de ´retratos’, quase crônicas, sem comprovar o profundo ódio de Canetti pelo país de acolhimento. O ódio, em Canetti, não é apenas um traço de caráter. É uma forma de afirmação pessoal, marca evidente de um intelecto pouco civilizado. Que estas memórias tenham sido escritas aos 85 anos, quando a velhice alegadamente costuma distribuir uns pós de sabedoria pelos seres humanos, eis um pormenor que torna esta obra duplamente triste e fracassada.

As palavras mais simpáticas do autor são dirigidas aos seus companheiros de exílio, como Franz Steiner, o antropólogo de Oxford que sai de Party in the Blitz com a reputação intacta. Inevitável: Steiner morreu jovem e, além disso, não representa nenhuma sombra para a figura monumental de Canetti. O resto é dispensável e não merece do gigante uma palavra de admiração. Nos séculos XVII, XVIII ou XIX, a Inglaterra tinha Shakespeare, Swift, Keats ou Blake. Sobretudo Blake. No século XX, não tem ninguém, com a evidente exceção de Canetti. T.S. Eliot não existe. Ou, quando existe, é para comprovar a irredutível mediocridade da literatura inglesa contemporânea. Evelyn Waugh, Graham Greene ou Anthony Powell nem aparecem no retrato. E Iris Murdoch [foto], amante de Canetti (a mulher, Veza, sabia de tudo e preparava chá e bolinhos para os três), é figura intelectualmente débil (fato), com corpo repulsivo (desconheço).

Claro que nada disto impedia Canetti de cumprir o seu calvário com Murdoch (uma tumba incapaz de soltar um único gemido durante o ato). O leitor já sabia que Canetti era um gênio. Não sabia ainda que era um gênio, um masoquista e um benemérito.

E ao fim de 40 anos, o que tem Canetti a dizer sobre o seu país de acolhimento? O óbvio: os ingleses são frios/arrogantes/distantes [riscar o que não interessa]. Bombardeados pelos nazis, continuavam tranquilamente nas suas festas, como se o mundo exterior não existisse (daí o título do presente livro). Curiosamente, Canetti não entende que foi precisamente essa frieza, essa arrogância e essa distância que permitiu a um povo sobreviver durante a blitz. Como também não entende, na sua seriedade provinciana de intelectual tipicamente Mittleeuropean, que a frieza, a arrogância e a distância dos ingleses são a fonte da sua excentricidade – a mais importante contribuição cultural da Inglaterra ao mundo.

O exílio termina com a chegada de Margaret Thatcher ao poder. A Suíça seria para Canetti a sua última paragem. Para o escritor, Thatcher representa o filistinismo insuportável e o crepúsculo de uma cultura superior, que ele experimentara durante quatro décadas. Uma contradição, claro: se a Inglaterra já estava moribunda em 1939 (na chegada), não se entende como ficou moribunda em 1980 (na partida). A menos que a milagrosa presença de Canetti tenha ressuscitado o cadáver por uns tempos. Possível. Provável. Quem disse, afinal, que o Messias só visitara Lázaro uma vez? 
Título e Texto: João Pereira Coutinho, Folha de S. Paulo, 17-9-2005, in ‘Avenida Paulista’, Edições Quasi, maio de 2008, páginas 147, 148 e 149. 
Digitação: JP

Um comentário:

  1. ELIAS CANETTI, O GRANDE IMBECIL BIBLICO-IDIOTA, METIDO A "ESCRITOR"!! É UM "BOM" LIXO!

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