quarta-feira, 26 de julho de 2017

Crimes e escapadelas

Facto: somos diferentes, somos falíveis; transportamos uma boa dose de preconceitos e imbecilidades precisamente porque somos falíveis. Donde, uma comunidade civilizada será aquela que permite a coexistência de diferentes concepções do bem sem que nenhuma delas tiranize as restantes

João Pereira Coutinho

UM Médico PORTUGUÊS partilhou com o mundo as suas opiniões sobre a homossexualidade e os hábitos reprodutivos de Cristiano Ronaldo. Portugal desabou com estrondo. Portugal, vírgula: os profissionais da indignação, que estão sempre à espera de qualquer deslize.

Imagino até que existe um código entre eles – uma espécie de SIRESP que, ao contrário do original, funciona na perfeição. Alguém, algures, pisa o risco do aceitável – e as matilhas sentem as hormonas em fogo e desatam a mostrar ao mundo as respectivas virtudes.

O caso sempre me fascinou – filosoficamente falando, entenda-se. Em primeiro lugar, porque sempre considerei ofensiva a forma como pessoas aparentemente adultas desatam a defender "minorias" como se as ditas cujas fossem espécies desprotegidas – pandas cor-de-rosa, digamos – privadas de racionalidade ou voz. 

Ninguém lhes passou procuração para tamanho paternalismo. E sei que muitos homossexuais sentem repulsa com o oportunismo desta gente. Mas nada disso as impede de infantilizar os outros para crescerem em popularidade e influência. Fazem lembrar aquelas estrelas de Hollywood, versão pelintra, que adoram ir a África para adoptar um nativo ou dois. Fica sempre bem nas fotos – e a audiência aprecia o gesto.

Mas existe um segundo problema que lida com a cabeça destes puritanos. Aqui há uns meses, o filósofo Paulo Tunhas escreveu no Observador um texto antológico (Elogio da Indiferença) que era, sobretudo, uma defesa da maior das virtudes "liberais" (atenção: uso "liberal" no sentido histórico, político, cultural do termo). 

Facto: somos diferentes; somos falíveis; transportamos uma boa dose de preconceitos e imbecilidades precisamente porque somos falíveis. Donde, uma comunidade civilizada será aquela que permite a coexistência de diferentes concepções do bem sem que nenhuma delas tiranize as restantes. E isso só é possível quando somos capazes de exercer uma certa dose de "indiferença" perante o turbilhão. Há limites? 

Claro que sim: se alguém é violentado à minha frente, só por desumanidade eu calo e consinto. Mas em Estados de Direito existem juízes e tribunais para lidarem com crimes, ou suspeitas de crimes. Eu não preciso de me comportar como vigilante e delator do meu vizinho, porque viver em sociedade, e não no "estado de natureza", libertou-me desse jugo primitivo. 

Os nossos puritanos pensam e agem como se ainda estivessem na selva. Qualquer movimento suspeito atinge os seus cérebros reptilianos e o resto é puro instinto. Sob uma capa cosmopolita e moderna, eles são, ironicamente, seres assustados e cavernícolas, incapazes de suportar a terrível imperfeição do mundo. 

Mas não é apenas a imperfeição do mundo que os perturba. No seu texto, Paulo Tunhas evoca, sem desenvolver, a tendência psicológica para nos libertarmos do sofrimento pessoal pela condenação do outro. Vou mais longe: se isso é válido para qualquer ser humano, é sobretudo válido para qualquer puritano.

Não preciso de citar os casos extremos de jihadistas vários que marcham contra a "decadência do Ocidente" porque, obviamente, sentem-se perigosamente atraídos por ela. Ler os textos de Sayyid Qutb, o grande teórico sunita da Irmandade Muçulmana, é o melhor exemplo dessa mentalidade: na sua viagem pelos Estados Unidos, Qutb dedica páginas demoníacas à mulher americana – e é impossível não pressentir em cada linha a fogueira do desejo a crepitar.

Em menor escala, os nossos puritanos desenvolvem o mesmo mecanismo de ataque e defesa: eles são rápidos a condenar as falhas dos outros porque não toleram as suas próprias falhas. Pior: acreditam que a redenção do mundo os exime de qualquer redenção pessoal. No limite, a fúria não é exterior. É interior. E, precisamente por causa disso, de um sofrimento sem fim
Título e Texto: João Pereira Coutinho, SÁBADO, nº 690, de 20 a 26 de julho de 2017

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Um comentário:

  1. COMUNICADO Nº 018/2017
    Assunto: Antecipação de Tutela Recursal (Decisão proferida pelo Desembargador Federal Daniel
    Paes Ribeiro do TRF – 1ª Região, nos autos da Apelação em Ação Civil Pública nº 0010295-
    77.2004.4.01.3400)
    Prezados (as) participantes aposentados (as) e pensionistas,
    Referente ao processo em evidência, informamos que recebemos da União Federal o valor necessário
    ao pagamento da Tutela Antecipada União do mês de JULHO DE 2017, relativo aos planos VARIG
    e TRANSBRASIL.
    O crédito está previsto para o dia 02/08/2017 e os contracheques estarão liberados em breve
    no site do Aerus na área restrita (AUTO ATENDIMENTO).
    Atenciosamente,
    Walter de Carvalho Parente
    Liquidante
    Portaria Previc nº. 283, de 11/05/2016, DOU de 12/05/2016

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