Maria João Avillez
Um misto de leveza, manha,
irresponsabilidade. Uma manipulação a partir do palco do poder para a plateia
de patetas onde quem não é da geringonça é suposto estar sentado.
1. Os governos são como as marés: vão e vêm. Nascem, estão, partem
e vêm novas marés. Mas o embaraço, não. O embaraço constrangido que
determinadas governações podem causar, fica. Um dia, daqui a muito ou pouco
tempo – é irrelevante para o que me traz – a geringonça desconjuntar-se-á, mas
aquilo que nos constrangeu, envergonhou ou embaraçou, permanecerá, temo bem,
impresso nas mentalidades e no ar do país. Não me refiro a medidas, prioridades
ou escolhas que competem a quem governa, mesmo não tendo sido eleito para tal.
Refiro-me a uma certa, como dizer?, cultura do modo como se está na política e
do modo como ela se pratica. Um misto de leveza e manha, de “tudo nos é permitido”
e vale tudo. Da manipulação encenada a partir do palco do poder para a plateia
de patetas onde quem não é da geringonça, é suposto estar sentado.
E onde, outros dos (grandes)
embaraços é certamente a fartura dos exemplos dessa forma de estar, espécie de
nova cultura.
2. Embaraço não chega para definir (?) a misteriosa “forma mentis”
do ministro da Defesa e a embaraçosíssima (e pelos vistos, também eterna)
questão do roubo de Tancos. Recorre-se a “inquéritos”, a salvífica solução de
sempre para salvar a honra de vários conventos, embora se saiba à partida (e à
chegada) que pouco ou nada se averiguará cabalmente. Donde, não há remédio
senão manter as mesmas perguntas de há meses: que se passou que não merecemos
ou podemos saber? Afinal não houve roubo? Ou houve e quem roubou, “no limite”,
caro ministro, fez-lhe o favor de arredar aquela tralha de um perímetro mal
guardado e fez muito bem porque o material estava nas lonas? Ou, pelo
contrário, ocorreu algo de muito mais chato, tão chato que o melhor é
tratar-nos como tontos que não justificam explicações difíceis? Seja o que for,
passou uma estação do ano (são só quatro) e pouco sabemos. A não ser que há um
ministro que é um erro de casting, entre outros erros; que havia um chefe de
Estado Maior que não fora esta tragicomédia e não se adivinhava que era outro
erro de casting; que com esta “atuação” o poder deixou claro como trata os
portugueses. E ainda: um país, uma elite, uma classe política que convive tão
bem com tudo isto não se respeitam a si próprios. Não podem ser levados a sério
ou tidos em conta fora de portas. E pensar que pode não ficar por aqui… É que
conforme me lembrou um dia alguém avisado, “em política há sempre pior”.
3. Há dias foi o ministro das Finanças a “brincar” à baixa de
impostos (é de impostos que falamos), parecendo-nos que ia ser muito bondoso
para com o nosso esmifrado dinheiro para logo se perceber que a bondade era
magrinha e não era nova, a medida já estava programada. Uma leviandade deste
risonho Terreiro do Paço, assente – como tantas vezes ocorre nesta governação –
na peregrina ideia (?) de que se pode, sem limite de vergonha, fazer a toda a
hora de nós parvos.
Há infelizmente mais exemplos.
Irão certamente extenuar ou exasperar o leitor que já os conhece e preferiria
porventura ouvir falar das autárquicas ou dos discursos da ONU. Mas se não contamos,
repetimos e recordamos estes maus exemplos, estamos não só – por omissão – a
concordar com aquilo de que discordamos, como a consentir continuar sentados na
plateia dos patetas. Apreciando por exemplo a leveza de alguns governantes e
outros tantos legisladores. No caso, uma iniciativa abismadamente oportunista,
e estou agora a pensar nas barrigas de aluguer. Aprovadas de uma pernada só
porque dá jeito ao PS, ao governo, a António Costa, trocar algo que em nome de
uma suposta boa causa (para quem?) se utiliza como moeda de troca, comprando
com ela um também suposto sossego governamental. Ou seja, dá-se uma barriga ao
Bloco e com isso estica-se o prazo de duração em S. Bento. Se raríssimas vezes
na minha vida vi algo de tão essencial ser tratado com tamanha leviandade, o
certo é que um dia a geringonça parte-se, mas os alugueres ficam.
Podia continuar. Relembrar,
pela enésima (tristíssima) vez os mortos de Pedrógão, os passas culpas, o
destino desconhecido de bens e dinheiros para “lá” enviados; a
desresponsabilização imediata (imediata, como um tique convulsivo) de todos os
diversos atores ou intervenientes nesta tragédia; o fantástico caso do
“Siresp”, outro mistério marca Portugal; o prazo dado pelo Presidente da
República para um definitivo esclarecimento deste caso mas o arrastar desta
penosa história permite todas as dúvidas: havia prazo? Qual era? Ou o
Presidente já está afinal “esclarecido”, nós é que não?
Ou seja: das barrigas de aluguer,
oferecidas sem hesitar como contrapartida à esquerda radical, à sofreguidão das
cativações para beneficiar a eleita fatia do funcionalismo público (apesar das
injustas consequências das mesmas cativações nos mais desprotegidos); do luto
sem responsáveis de Pedrógão à vergonha sem rosto de Tancos; dos impostos que
descem sem descer às iluminadas experiências dos dois titulares da Educação,
Mário Nogueira e Tiago Brandão Rodrigues, eis alguns exemplos que mais do que
aquilo que expressam, me interessam como radiografias de um comportamento
político. E de uma “cultura” com a qual não estávamos assim tão bem
relacionados: qualquer “atuação”, por menos recomendável que seja, é logo
totalmente secundarizada pela compensação que traz; e o não assumir de responsabilidades
ou o não prestar explicações públicas é praticado com uma estarrecedora
naturalidade. Uma estranha forma de uso e manejo do poder, instigadora (e
“instaladora”) de uma cultura de indiferença, de relativização do erro, de
jogo, manha, camuflagem, irresponsabilidade políticas. Vale tudo?
Uma pena. Não era preciso ser
isto, nem ser assim.
4. No ambiente inquinado de irracionalidade (e não há nada que a
política mais deteste que a irracionalidade) duvido que os propósitos acima
emitidos sejam vistos ou lidos como o que são e nesse sentido, como eu gostaria
que naturalmente fossem: contributos normais de reflexão, perplexidade ou
critica face ao que espanta ou perturba um cidadão comum. Mas parece que para
gente como eu, sem assento no “novo olimpo”, não sobra esse direito. Temos
erisipela.
Desde há meses e meses que o
Governo dispara sem sombra de racionalidade, justeza, lucidez (para não falar
em seriedade intelectual) sobre a anterior governação, pretendendo esconder sob
os disparos o quanto tal pesada herança lhe forneceu uma considerável (e
indispensável) dose de oxigénio financeiro. Sem a qual nenhuma bondade jamais
teria lugar, nenhum brilharete disfarçado de generosidade, nenhuma “reposição”
mascarada de justiça social, nenhum aumento camuflado de “nós somos bonzinhos,
eles eram péssimos”, teriam jamais ocorrido.
De modo que pior ainda do que
os quadros de mau comportamento político que acima descrevi e deveriam fazer
acordar algumas boas almas, é o facto de eles irem ser lidos ao viés e com
acidez. Outra pena. Mas parece que é assim que está a ser adubada uma parte do país:
com ácido.
Outra pena, não: a maior
delas. E certamente a mais evitável.
Título e Texto: Maria João Avillez, Observador,
21-9-2017
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