quinta-feira, 21 de setembro de 2017

A plateia dos patetas

Maria João Avillez

Um misto de leveza, manha, irresponsabilidade. Uma manipulação a partir do palco do poder para a plateia de patetas onde quem não é da geringonça é suposto estar sentado.

1. Os governos são como as marés: vão e vêm. Nascem, estão, partem e vêm novas marés. Mas o embaraço, não. O embaraço constrangido que determinadas governações podem causar, fica. Um dia, daqui a muito ou pouco tempo – é irrelevante para o que me traz – a geringonça desconjuntar-se-á, mas aquilo que nos constrangeu, envergonhou ou embaraçou, permanecerá, temo bem, impresso nas mentalidades e no ar do país. Não me refiro a medidas, prioridades ou escolhas que competem a quem governa, mesmo não tendo sido eleito para tal. Refiro-me a uma certa, como dizer?, cultura do modo como se está na política e do modo como ela se pratica. Um misto de leveza e manha, de “tudo nos é permitido” e vale tudo. Da manipulação encenada a partir do palco do poder para a plateia de patetas onde quem não é da geringonça, é suposto estar sentado.

E onde, outros dos (grandes) embaraços é certamente a fartura dos exemplos dessa forma de estar, espécie de nova cultura.

2. Embaraço não chega para definir (?) a misteriosa “forma mentis” do ministro da Defesa e a embaraçosíssima (e pelos vistos, também eterna) questão do roubo de Tancos. Recorre-se a “inquéritos”, a salvífica solução de sempre para salvar a honra de vários conventos, embora se saiba à partida (e à chegada) que pouco ou nada se averiguará cabalmente. Donde, não há remédio senão manter as mesmas perguntas de há meses: que se passou que não merecemos ou podemos saber? Afinal não houve roubo? Ou houve e quem roubou, “no limite”, caro ministro, fez-lhe o favor de arredar aquela tralha de um perímetro mal guardado e fez muito bem porque o material estava nas lonas? Ou, pelo contrário, ocorreu algo de muito mais chato, tão chato que o melhor é tratar-nos como tontos que não justificam explicações difíceis? Seja o que for, passou uma estação do ano (são só quatro) e pouco sabemos. A não ser que há um ministro que é um erro de casting, entre outros erros; que havia um chefe de Estado Maior que não fora esta tragicomédia e não se adivinhava que era outro erro de casting; que com esta “atuação” o poder deixou claro como trata os portugueses. E ainda: um país, uma elite, uma classe política que convive tão bem com tudo isto não se respeitam a si próprios. Não podem ser levados a sério ou tidos em conta fora de portas. E pensar que pode não ficar por aqui… É que conforme me lembrou um dia alguém avisado, “em política há sempre pior”.

3. Há dias foi o ministro das Finanças a “brincar” à baixa de impostos (é de impostos que falamos), parecendo-nos que ia ser muito bondoso para com o nosso esmifrado dinheiro para logo se perceber que a bondade era magrinha e não era nova, a medida já estava programada. Uma leviandade deste risonho Terreiro do Paço, assente – como tantas vezes ocorre nesta governação – na peregrina ideia (?) de que se pode, sem limite de vergonha, fazer a toda a hora de nós parvos.

Há infelizmente mais exemplos. Irão certamente extenuar ou exasperar o leitor que já os conhece e preferiria porventura ouvir falar das autárquicas ou dos discursos da ONU. Mas se não contamos, repetimos e recordamos estes maus exemplos, estamos não só – por omissão – a concordar com aquilo de que discordamos, como a consentir continuar sentados na plateia dos patetas. Apreciando por exemplo a leveza de alguns governantes e outros tantos legisladores. No caso, uma iniciativa abismadamente oportunista, e estou agora a pensar nas barrigas de aluguer. Aprovadas de uma pernada só porque dá jeito ao PS, ao governo, a António Costa, trocar algo que em nome de uma suposta boa causa (para quem?) se utiliza como moeda de troca, comprando com ela um também suposto sossego governamental. Ou seja, dá-se uma barriga ao Bloco e com isso estica-se o prazo de duração em S. Bento. Se raríssimas vezes na minha vida vi algo de tão essencial ser tratado com tamanha leviandade, o certo é que um dia a geringonça parte-se, mas os alugueres ficam.

Podia continuar. Relembrar, pela enésima (tristíssima) vez os mortos de Pedrógão, os passas culpas, o destino desconhecido de bens e dinheiros para “lá” enviados; a desresponsabilização imediata (imediata, como um tique convulsivo) de todos os diversos atores ou intervenientes nesta tragédia; o fantástico caso do “Siresp”, outro mistério marca Portugal; o prazo dado pelo Presidente da República para um definitivo esclarecimento deste caso mas o arrastar desta penosa história permite todas as dúvidas: havia prazo? Qual era? Ou o Presidente já está afinal “esclarecido”, nós é que não?

Ou seja: das barrigas de aluguer, oferecidas sem hesitar como contrapartida à esquerda radical, à sofreguidão das cativações para beneficiar a eleita fatia do funcionalismo público (apesar das injustas consequências das mesmas cativações nos mais desprotegidos); do luto sem responsáveis de Pedrógão à vergonha sem rosto de Tancos; dos impostos que descem sem descer às iluminadas experiências dos dois titulares da Educação, Mário Nogueira e Tiago Brandão Rodrigues, eis alguns exemplos que mais do que aquilo que expressam, me interessam como radiografias de um comportamento político. E de uma “cultura” com a qual não estávamos assim tão bem relacionados: qualquer “atuação”, por menos recomendável que seja, é logo totalmente secundarizada pela compensação que traz; e o não assumir de responsabilidades ou o não prestar explicações públicas é praticado com uma estarrecedora naturalidade. Uma estranha forma de uso e manejo do poder, instigadora (e “instaladora”) de uma cultura de indiferença, de relativização do erro, de jogo, manha, camuflagem, irresponsabilidade políticas. Vale tudo?

Uma pena. Não era preciso ser isto, nem ser assim.

4. No ambiente inquinado de irracionalidade (e não há nada que a política mais deteste que a irracionalidade) duvido que os propósitos acima emitidos sejam vistos ou lidos como o que são e nesse sentido, como eu gostaria que naturalmente fossem: contributos normais de reflexão, perplexidade ou critica face ao que espanta ou perturba um cidadão comum. Mas parece que para gente como eu, sem assento no “novo olimpo”, não sobra esse direito. Temos erisipela.

Desde há meses e meses que o Governo dispara sem sombra de racionalidade, justeza, lucidez (para não falar em seriedade intelectual) sobre a anterior governação, pretendendo esconder sob os disparos o quanto tal pesada herança lhe forneceu uma considerável (e indispensável) dose de oxigénio financeiro. Sem a qual nenhuma bondade jamais teria lugar, nenhum brilharete disfarçado de generosidade, nenhuma “reposição” mascarada de justiça social, nenhum aumento camuflado de “nós somos bonzinhos, eles eram péssimos”, teriam jamais ocorrido.

De modo que pior ainda do que os quadros de mau comportamento político que acima descrevi e deveriam fazer acordar algumas boas almas, é o facto de eles irem ser lidos ao viés e com acidez. Outra pena. Mas parece que é assim que está a ser adubada uma parte do país: com ácido.

Outra pena, não: a maior delas. E certamente a mais evitável.
Título e Texto: Maria João Avillez, Observador, 21-9-2017

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