Aparecido Raimundo de Souza
“Minha casa era modesta, mas eu estava seguro,
não tinha medo de nada“.
De “O Divã”, de Roberto Carlos
e Erasmo Carlos.
NO LUGAR ONDE EU MORO, ou
seja, na casa de meus pais, a coisa anda pra lá de feia. Além do pai e da mãe,
dez outras bocas famintas ajudam a aumentar as despesas, não tirando, é claro,
as quatro do fogão. Embora essas não sejam humanas, consomem o gás da botija
para manter as panelas com os fundos de suas bundas quentinhas. Ao todo, somos
dezesseis cabeças (seis homens e quatro fêmeas de tirar o sossego do Papa),
computadas, igualmente, com as do vídeo que não funciona. Os números de pés
chegam a trinta e um, incluindo os três da geladeira. Felizmente esses não
utilizam sapatos.
Cabe aqui uma explicação. O
refrigerador ficou capenga em decorrência da mudança. Os carregadores (mais
desastrados que apressados, ou as três coisas juntas) fizeram a gentileza de
quebrar um deles, na descida do caminhão. Para que as pessoas se situem, nos
escondemos do tempo numa chácara de cinco mil metros quadrados, ao redor da
cidade. A construção é bastante antiga e espaçosa, além de engraçada,
extremamente engraçada. Existe, nela, uma escada interna em formato de caracol
ligando o andar térreo ao superior. Nesse piso, vários quartos se alinham
juntamente com dois banheiros extras. De manhã, mesmo com esses dois banheiros
extras, é um verdadeiro inferno, com toda a galera querendo, ao mesmo tempo,
fazer uso das privadas.
Se alguém não consegue segurar
as necessidades mais prementes urge correr nos fundos do quintal (tem uma parte
que é só mato), ou se preferir, sujar as calças de merda. É uma opção não muito
acertada, todavia, melhor que ruminar um bolo malcheiroso querendo explodir
para fora de qualquer forma. Não dormimos em beliches, mas em colchonetes
espalhados pelo assoalho. Meus velhos são os únicos que utilizam uma cama de
ferro acomodada em lajotas, presente do Tio Firmino, que morreu ano passado, do
coração. Na entrada dos lavabos, meu irmão Luiz afixou uma espécie de
prateleira presa a braçadeiras de ferro, onde são guardadas as escovas de
dente, da dentadura de vovô e de cabelos, somadas aos tubos de pastas e outras
quinquilharias de uso estritamente indispensável ao embelezamento matinal.
Temos o Pavio, sujeito bom que
ajuda meus pais nos afazeres diários. Não me recordo, se o incluí na contagem
das cabeças, bocas e pés, mas que diferença isso faz agora? Pavio é considerado membro da família. Uma
espécie de criado, na realidade. O coitado só não fala. Ficou mudo depois que perdeu a língua num
assalto. Os bandidos que o renderam, além de levarem todos os pertences, um
fusquinha 68, alguns trocadinhos e os tênis, acharam por bem lhe faturar também
o órgão da fofoca, perdão, do paladar. Quem botou esse apelido de Pavio, no
Pavio, foi a mamãe, que o tirou de Pinóquio, de Collodi, seu livro de
cabeceira.
Meu irmão mais novo, o
Zazinho, engajou no exército. É quase tenente. Quando está de folga (permanece
muito tempo no quartel), a gente costuma lhe apresentar a vassoura de piaçava
para varrer o quintal. O cara fica muito irado, porque a vassoura não tem cabo
e ele, para dar conta do recado, precisa se curvar sobre a própria barriga.
Papai colocou na sala um sofazinho sem braços. À noite, para assistirmos a
televisão de onze polegadas, desligamos o lampião de gás sobre a estante. Temos
luz elétrica lá para dentro, quero dizer, lá para cima, porém, o Beto – meu outro
irmão (que estudou eletricidade), ainda não achou tempo de puxar a fiação e
botar os bicos de luz nos cômodos faltosos.
No imenso quintal, plantamos
de tudo. Da alface, para a salada, ao arroz com feijão. Mamãe ganhou um loro
(louro) que detesta dar o pé. E o mais engraçado, não gosta que lhe catem os
piolhos. Não repete nada do que falamos, vive de olho num gato sem rabo que a
Mariana, a consanguínea do meio faturou quando completou quinze anos. Aliás,
essa aí é a menina dos olhos de papai. Ele ficou cego de uma vista, por causa
da diabete e Mariana é quem o leva todo mês, a tiracolo, na caixa para receber
a aposentadoria e sair pagando depois, as contas. A nossa rua não é
propriamente o que poderíamos chamar de avenida. Está mais para um beco apertado.
Não tem saída. Ela termina num encosto de morro que não leva a lugar nenhum.
Tio Chico (irmão de papai), a apelidou de ‘via curta’. Não dá mão. Nem pé.
Quando o bauzão do mercado entra para vir fazer a entrega das compras, ou um
carro de passeio estaciona em outros portões, os motoristas se vêm com os
nervos em frangalhos. Chegam a arrancar os cabelos, mesmo aqueles que foram
benfazejados pela calvície prematura. Os que não são carecas, falam mal,
esbravejam e xingam o prefeito.
O melhor dia, aqui em casa é
realmente o domingo. A família, em peso, se reúne em derredor da velha mesa de
cozinha para o almoço. Alguém põe sempre para assar uma carne de traseiro.
Arrastamos o móvel da vitrola até a varanda e a coisa só não fica cem por cento
animada quando o braço do toca-disco resolve não pousar a agulha de cristal nos
velhos setenta e oito rotações. Temos consciência que papai está no fundo do
poço (a doença que o definha, aos poucos, lembrando, a cegueira, o deixa
desanimado, na maioria das vezes), contudo, o mais importante, está direto ao
nosso lado, dando o devido apoio e procurando manter a moral erguida e a
família unida, igual arroz grudento tipo “unidos venceremos”.
Vamos falar, agora, do
poço. O nosso é desses artesianos, quase
cinquenta e dois metros de fundura. Papai, de quinze em quinze dias costuma
mandar o Pavio ir lá no fundo para averiguar não sei exatamente o quê. Acho que
deve ser para se certificar como está a água, que jorra em abundância e enche
não só a nossa caixa como a de mais uma meia dúzia de vizinhos. Temos mania de
dizer que Pavio vai e volta do fundo do poço, com uma velocidade incrível, e
quando sai do buraco, vem içado num grande balde, preso a fortes correntes do
tempo em que vovó e vovô, andavam de bicicleta de uma roda só.
Papai, de quando em vez, tem
umas recaídas brabas. Nessas ocasiões, se tranca, no quarto, para chorar
escondido, no colo de mamãe. Meio que apavorada, ela se transforma numa espécie
de santa: nessas ocasiões, não fala com ninguém, não atende nenhum de nós e só
tem olhos para o esposo (afinal, são quase quarenta e cinco anos de
convivência). Toda vez que isso
acontece, ou seja, quando papai se enfurna no colo de mamãe, ficamos
apreensivos, pensando que talvez papai, desiludido com a vida, acabe por
decidir findar com a existência.
Desde o ano passado, papai
encasquetou que está dando muito trabalho, e, em vista disso, por se considerar
um trambolho, pularia da ponte. Até então ninguém levou fé. Até sábado
retrasado, pelo menos. Meu pai esperou Mariana ir para o trabalho. Sem que
ninguém desse pela coisa locou um taxi na pracinha e quando chegou na parte
mais alta, no chamado vão central da morte, fingindo um ligeiro mal-estar,
pediu para que o motorista parasse. Precisava vomitar, teria dito ao motorista.
O motorista, coitado, vendo a agonia do cidadão, encostou. Papai saltou e
lentamente se achegou da amurada. Olhou para o vazio do mar imenso. Fez pior,
subiu na amurada. O motorista do taxi, um sujeito baixo e corpulento, de mãos e
pés pequenos, rosto com papada, cabeça arredondada, como uma batata sob um
solidéu, apreensivo, imediatamente fechou os olhos. Às apalpadelas, se
segurando no carro, tremendo pior que caniço em ventania, chegou o mais rápido
que pode, tentando evitar que seu passageiro fizesse a besteira.
Sem contar que o maluco que
ameaçava pular, meu querido pai, nem pagara a corrida. Quando voltasse, teria
que acertar com o dono do carro. Contudo, quando chegou para segurar meu velho,
o cidadão não teve escolha. Precisou abrir os olhos. Ao fazê-lo, a merda
esborrou. Deu de cara com o mar imenso. E mais que o mar, com a altura. Não deu
outra. Frente ao medo, desmaiou.
Papai, que pensava em saltar,
sair furtivamente da vida, sem considerar seus dias de glória nem temer o
castigo que se abateria sobre seus costados, de repente mudou de ideia e
despulou das garras da morte iminente. Correu apressado, afoito, temendo que o
pobre motorista viesse a óbito. Nesse
corre-corre sinalizou para outros que cruzavam. Conclusão: prevaleceu a solidariedade
da galera. Juntou uma pá de gente e todos se uniram. Levaram o pobre do
motorista, para o pronto socorro mais próximo, o semblante deste branco, mais
alvo que rosto de mármore repousando num museu. Era possível enxergar sua alma
através da pele. Graças a Deus, com esse piripaque do infeliz, papai tirou
definitivamente essa história de querer se suicidar.
Ele e o tal motorista (seu
Adão do Fiat 147 amarelo) estão vivos até hoje. Ficaram amigos. Todo final de
semana, o referido senhor vem aqui para casa. Sentam ao sol, num banco de
madeira, com ares plenos do dever cumprido. O futuro que os contempla, deixa
sobre suas carcaças, uma vazia perspectiva a se derramar na eternidade. Pelo sim, pelo não, mas pelo sim, que pelo
não, o incidente serviu para unir dois medrosos abestalhados. Um de pular, e o
outro, de perder o valor da corrida. As más línguas atestam o contrário. À boca
miúda, observam que papai, na hora agá, tremeu na base, vendo o motorista
revirando os olhos e entrando em pânico. Por seu turno, o motorista, com medo
de altura, ao olhar para baixo, empalideceu, descorou e por essa razão,
desfaleceu boquiaberto. Nessa lengalenga do campeonato, vai se saber! Aliás, é
humanamente difícil, senão impossível, de se compreender. E cá entre nós, compreender
para quê?!
Título e Texto: Aparecido
Raimundo de Souza. De Brasília, Distrito Federal. 26-9-2017
Colunas anteriores:
"Era possível enxergar sua alma através da pele."
ResponderExcluirSe á única frase do texto fosse esta destacada, já valeria a leitura!
Podiamos abrir mão do restante sem ficar no prejuízo , mas não. Tem mais muito mais.
Ah! Como gostaria de escrever assim!
Mas qual...
Parabéns!
Paizote