Eduardo Cintra Torres
Não me lembro de, alguma vez,
em democracia, um jornal de ‘referência’ fazer manchete dum slogan político.
Aconteceu ontem. No ‘Expresso’, em letras gigantes, lê-se: "Rui Rio: ‘É
hora de agir’". Pensei que o candidato do PSD dissera essa frase ao
semanário. Mas não. No interior, o jornal reproduz o cartaz de Rio com o
slogan. Na primeira página, a manchete teve direito a um fundo cor-
-de-laranja, para identificar Rio com uma onda em crescimento no PSD. Rio
aparece sobre esse fundo de corpo inteiro, a dar um jeito à gravata, gesto que
pretende conotar a tal ‘hora de agir’. Transformada em manchete, essa frase —
inócua, por já se saber que Rio se candidatava — é uma opção editorial de apoio
a Rio.
No interior, a notícia é
entusiástica, escrita pelo mesmo jornalista que andou meses a juntar à
informação sobre Passos Coelho uma subjetividade antipassista sarcástica, para
não dizer humilhosa. O entusiasmo editorial por Rio contrasta com o desapreço
editorial por Passos, reconfirmado semana a semana desde que António Costa
formou governo. O mesmo entusiasmo, alívio, até, pôde ver-se na capa de uma
revista do mesmo grupo, a ‘Visão’. Com um Rio gigante, a ‘Visão’ dava a boa
nova ao povo: "É desta!"
Defendo que os media podem ter
a máxima liberdade editorial, a par duma informação rigorosa. O que pretendo
aqui relevar é como esta escolha editorial se enquadra numa luta subterrânea,
de que não se fala porque não se quer apercebida: a luta pela sobrevivência do
‘sistema’, essa misturada de política e negócios feita à sombra da democracia,
assim mantendo uma enorme liberdade de ação devido à deriva da atenção das
pessoas para outros temas, a começar nos media, ou ocultando o que está de
facto em causa: controlar o orçamento, obter dividendos, lugares para
militantes, parentes, adjudicar trabalhos estatais a empresas ‘amigas’, etc. A
‘tempestade perfeita’ para o ‘sistema’ é que este pântano também agrada ao PCP,
BE, e a partes do PSD e CDS.
O ‘sistema’ não perdoou a
Passos ter recusado o dinheiro do Estado (da CGD) para salvar o número um do
‘sistema’, o BES de Salgado; que rejeitasse a tentativa ‘irrevogável’ de Portas
de salvar o BES in extremis, quando já sabia a decisão de Passos, deitando
abaixo o governo; e também não lhe perdoou que garantisse a independência do Ministério
Público, que o ‘sistema’ antes controlava.
Uma boa parte dos media atacou
sistematicamente Passos, que não intervinha nem pressionava os media; e
alcandora Costa e Rio, conhecidos ambos pela sua fanfarronice contra os media:
um paradoxo que só se explica pela fidelidade desses media ao ‘sistema’.
Título e Texto: Eduardo Cintra Torres, Correio da Manhã, 9-10-2017
Embora concorde com o artigo de Cintra Torres, há uma passagem que acho incorrecta: "luta subterrânea". Essa luta há muito que deixou de ser subterrânea e trava-se a céu aberto - nas páginas de jornais, redes sociais e aberturas de telejornais.
ResponderExcluirCerto.
ExcluirTalvez o autor queira significar que nem todos cidadãos se aperceberam da despudorada campanha política travestida de jornalismo. Ou seja, para alguns cidadãos, o que aparece nos jornais e nos telejornais é fruto de um trabalho sério...
Quando ainda assistia às TVs em Portugal, gostava do Jornal das 9, na SIC Notícias, com Mário Crespo. Quando este acabava e chegava a chamada para o Jornal das 10, com Ana Lourenço, nossa! lembro bem: ela, de pé, anunciando a(s) desgraça(s) daquele dia... “O governo fez...“, “Passos Coelho deixou de fazer...”...
Uma última nota: o que é Pacheco Pereira, apresentado no rodapé dos televisores como comentador representando o... PSD?!