Maria João Avillez
“Uma decisão destas toma-se sozinho”,
disse-me Passos no domingo. O futuro? "Não sei, mas não sou de grandes
necessidades". Convites? "É complicado convidar um
ex-primeiro-ministro para trabalhar."
1. Esperava más notícias, teve as piores. “Veremos”, disse para si
mesmo domingo à noite, no intervalo entre a expectativa de o PSD passar o cabo
de 2013 e a certeza de que ficaria aquém. Depois, face à devastação nacional, refletiu:
partiria.
A decisão
foi solitária, como ele. “Uma decisão destas toma-se sozinho”, disse-me Pedro
Passos Coelho na madrugada de domingo, quando tentei apurar a devastação e descodificar-lhe
o discurso. Deixaria a liderança e o parlamento e tudo o mais em nome “da sua
responsabilidade” no desaire, apesar do carácter “local” destas eleições.
Quando? “O mais breve possível”.
Tinham passado sete
implacáveis anos de pressão sobre ele.
A costela transmontana
forneceu-lhe a resistência, a dureza, o valor da palavra, o papel do esforço, o
aço da convicção. Por de trás do olhar esverdeado e do sorriso cortês há mais
razão que coração mas morou sempre, da intenção ao gesto, uma férrea vontade e
uma imensa dose de autocontrolo.
Como na noite de domingo. Como
certamente ontem, na Rua de S. Caetano, face a uma plateia para a qual olhou
como sempre até aqui, sem réstea de ilusão. Se há coisa que em absoluto o
distingue, e não é de hoje, é o nunca ter sido capaz de alimentar – ou sequer
ter – qualquer ilusão sobre a natureza humana.
2. Talvez por se ter entregue totalmente ao país, tinha menos para
dar ao PSD. Talvez por ter ganho duas legislativas seguidas contra tudo e todos
(e da segunda vez sem proveito), enganou-se nos vaticínios. Tropeçou nos
timings, errou nas apostas de insucesso do adversário sem nunca lhe ocorrer
desistir da coerência do discurso e da sobriedade da atitude. Preferindo quiçá
a sua antiga pele de chefe da governação, não soube abrir o PSD ou não foi
capaz de cuidar dele de forma partidariamente mais sedutora e politicamente
mais eficaz. Adequada ao estado do país e ao momento do mundo. Com mais gente e
outra gente.
Talvez que saltar da “Europa”,
com ou sem aspas, e das suas grandes tribulações; talvez que trocar o mundo e
as suas desafiantes questões pelas distritais, concelhias, grandes intrigas e
pequenos umbigos de um partido na oposição, seja bem mais difícil do que supõem
os críticos de bancada. Mesmo assim. Estranhou-se a falta de candidatos
presidenciais, permanecem um inteiro mistério os bastidores destas eleições.
Que se passou? A verdade é que o seu cuidado no país e (aparentemente) menos no
seu partido, a fé na sua estratégia oposicionista, a propensão natural para não
abrir janelas nem frequentar o mundo, a imposição de uma “distância” que podia
intimidar ou confundir, foram fazendo estragos: no PSD, nas sondagens, na
militância, e não se sabe se nele próprio: a oposição – armadilhada, ainda para
mais – estava a transformar-se numa inutilidade.
Pedro Passos Coelho cansou-se,
desgostou-se, desiludiu-se? (Se é que algumas destas coisas ocorreu de facto).
O certo é que, apesar da cabeça invariavelmente bem arrumada, da lucidez na
escala das prioridades, da experiência e da resistência, a partir de certa
altura alguma coisa pareceu interpor-se entre um dos seus mandamentos – saber
sempre o chão que pisava – e a sua vontade política. No caso, a sua vontade
partidária.
Tentei aperceber-me deste
último mistério (doloroso como nos rosários) eleitoral: “Mas então eu havia de interferir
nas escolhas autárquicas dos dirigentes locais? Eleitos para saberem,
decidirem, escolherem?”. Pausa. Insisto. E as “suas” escolhas? “Candidatos
fracos? Era perguntar a algumas das estrelas do PSD, sondadas ou convidadas, se
estavam disponíveis… Não estiveram”.
3. As pessoas sérias lembram-se, reconhecem, algumas agradecerão –
gostem ou não dele – a determinação meticulosa e corajosa, racional e
resiliente como em 2011 ele se instalou no olho de todos os furacões. E o
venceu. Quatro anos e meio de pressão non stop e massacres vários, desde a
obrigação governamental de acertar as contas e prestar provas delas lá fora,
até delirantes humilhações à base de manchetes falsas, irrevogáveis certezas de
“segundos resgastes”, coelhos enforcados nalguns sítios por onde passava, ódios
orquestrados. Nada disso distraiu nunca ou sequer comoveu este cavalheiro e
ainda menos lhe esmoreceu o ritmo ou confundiu o rumo. Pelos vistos ao
eleitorado também não: as últimas legislativas exibiram a vitória improvável da
seriedade política sobre os massacres, das contas certas sobre falsas certezas,
de uma sólida herança sob a forma da “folga” de alguns milhões (que muito
confortou e serviu os vindouros).
As pessoas mais distraídas já
não se lembrarão, e há outras que ainda hoje não se lembram, mas um dia (a vida
é assim, a política também), muitos recordarão aquele tipo decente que com uma
equipa e uma boa metade dos portugueses salvou o país de catástrofes várias.
Com sobriedade e boas maneiras, ainda para mais.
Haverá melhor passaporte para
o futuro?
Mesmo que tudo isto agora lhe
pareça, caro leitor, uma mera conversa de “passista” com ranço, olhe que não é.
É muito mais que isso: é um elogio não fúnebre. Tive muita sorte em ter sido
testemunha (sentada na primeira fila de tudo) da passada política de Passos. Vi
muito, sei algumas coisas, apercebi-me de outras, lembro-me de tudo.
4. Não há como não antecipar o porventura agora ainda mais
irrelevante futuro que espera o PSD. Nenhuns dos nomes de que se fala e dos que
se pode ainda vir a falar unirá o partido, argumento pesado sempre
incessantemente disparado sobre Passos Coelho, como um certificado de fracasso.
Entre os que de fora querem a destruição, o sumiço, o apagamento da marca PSD e
os que de dentro irão tecer a sua irrelevância, resta um débil sopro de
esperança chamado ruptura geracional. E mesmo assim.
Também não há como não prever
a glória desta ou outra geringonça socialista, o vento está-lhe de feição e o
país, visivelmente comovido com ela (mesmo que inconscientemente endividado).
Também me surge como
irresistível não pensar na alegria – pessoal, tanto quanto política – de
Marcelo, mesmo que ele deteste e (muito) tema vir a lidar com Rui Rio. E claro,
há ainda o inimaginável, de tão amplo, alívio de Costa. Marcelo e Costa foram,
não se duvide, dois dos grandes obreiros (há outros) da teia onde desde há seis
anos se tenta asfixiar politicamente o agora ex-líder do PSD e o próprio PSD.
5. E agora? Agora, Pedro Passos Coelho volta para casa. Amargura?
Olímpico: “Que ideia!” O futuro: “Não sei, mas não sou de grandes
necessidades”. Convites? “É sempre complicado convidar um ex-primeiro-ministro
para trabalhar. Não sei se teria o feitio…”. Projetos? “Acabar o meu livro, que
gostaria que já estivesse terminado”.
Com uma coisa ele irá, sem
dúvida, poder contar: com ele próprio. Como assinatura e retrato, se não
houvesse mais já não era modesto.
Título e Texto: Maria João Avillez, Observador, 3-10-2017
Marcação: JP
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Hoje, tinha me dado como tarefa escrever algo sobre Pedro Passos Coelho, algo no sentido de dividir com o generoso leitor a minha confiança e torcida nesse político.
ResponderExcluirEntretanto, soube que ele tombou; não vai continuar na presidência do PSD.
Fiquei surpreso, imaginava que ele continuasse a resistir. Mas logo parei, refleti, e, mais uma vez, apoio a decisão: o que ele quis dizer foi "ide tomar no cu!, à esquerda e dentro do meu próprio partido! Ninguém aguenta - tanto quanto aguentei - o constante e metódico insulto desde antes de assumir o governo em 2011!
E como aguentar calado as filhas-da-putice, uma vez por semana, de Marcelo Rebelo de Sousa e Marques Mendes!?"
Mas este artigo de Maria João Avillez 'acalmou' a minha vontade de escrever, porque ela traduz, bem mais delicada e apropriadamente, a minha opinião sobre Pedro Passos Coelho.
Por enquanto, à guisa de homenagem, a foto dele é o meu avatar no Facebook.
Mas, contudo, todavia, isso não quer dizer que eu não venha a escrever... deixa acabar de postar tudo o que estava na pasta "Provisória"... e, se tempo sobrar, preguiça não assaltar e competência houver, acho que voltarei.
ExcluirPassos nunca soube adaptar-se ao estranho papel de ser, ao mesmo tempo, o homem que tinha ganho as eleições e perdido o governo. Faltou-lhe instinto político antes e depois, cometeu erros por actos e omissões, e sai agora na altura certa, porque já não tinha como continuar. Foi um péssimo líder da oposição e um grande primeiro-ministro. Porquê? Em três pontos simples: tirou o país da falência em que o metera Sócrates, salvou-o da canalhice de Portas e libertou-o de 20 anos de sequestro por Ricardo Salgado. À medida que forem assentando ressentimentos e entusiasmos partidários, a História reconhecê-lo-á, sem dificuldade. Acima de tudo, foi sempre um homem de bem. Venha outro tão decente e melhor político. Mas será difícil. Não são características que se costumem encontrar na mesma pessoa.
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