I
Paulo Trigo Pereira, um dos
gurus da política económica do atual governo do PS e referência incontornável
da esquerda portuguesa, concedeu, há dias, uma entrevista ao Público,
da qual, só por estar profundamente entorpecida e desatenta, a nossa direita
não soube retirar o devido aproveitamento. O ponto mais importante do que aí
foi dito está num comentário feito a propósito da política orçamental para 2018
e da possível redução da carga fiscal em vigor, em que Trigo Pereira afirma o
seguinte: «O desagravamento fiscal não deve ser a bandeira da esquerda.
É a bandeira da direita».
Esta afirmação encerra, de
facto, o essencial que distingue, desde sempre, a esquerda da direita ou, para
sermos mais rigorosos, toda a esquerda de alguma direita liberal: a convicção
de que a justiça social e o progresso são apenas atingíveis pela intervenção do
estado na distribuição da riqueza socialmente gerada.
II
É verdade que existem
socialistas em muitos partidos, movimentos e think tanks de
direita. Friedrich Hayek dedicou, sintomaticamente, a sua histórica obra The
Road to Serfdom «aos socialistas de todos os partidos». Não o
fez por acaso, mas porque boa parte da direita – a do seu tempo, a do tempo
anterior ao seu e a do tempo que se lhe seguiu – acredita que os valores
sociais mais elevados da liberdade e da justiça social são inatingíveis pela interação
e cooperação humanas.
Conservadores e pessimistas,
estruturalmente hobbesianos no seu DNA, os que assim pensam
descreem nas virtudes do individualismo e olham para cada homem, em relação com
os outros, como um perigo e não um aliado e um parceiro natural. Para eles, a
ordem espontânea social e de mercado – a catalaxia – é uma
falácia literária, inexequível no mundo dos homens, sendo necessário que o
estado intervenha para dar sentido às coisas. Mas se muita direita ainda pensa
assim, onde só existem socialistas, que assim pensam, é, inquestionavelmente,
na esquerda. E Paulo Trigo Pereira, com elevação e honestidade intelectual,
disse-o claramente naquela sua frase: a direita (alguma direita) pugna pelo
desagravamento fiscal, mas a esquerda não deve fazê-lo, porque defende a
virtude do imposto como mecanismo necessário para uma melhor distribuição da
riqueza, a fim de alcançar a tal justiça social, de outra forma considerada
inatingível.
III
Ora esta é, precisamente, a
fronteira que deve fixar a distinção entre esses dois pólos da histórica
dicotomia. Não se trata de querer manter a divisão geográfica que vem da velha
Assembleia Nacional francesa e que depois se transmitiu, embora com importantes
nuances, para a Convenção parlamentar que lhe sucedeu, tão pouco pretender
preservar blocos ideologicamente homogéneos, entre si higienicamente separados.
Repetimos: à direita
multiplicam-se os socialistas; mas o território natural do socialismo é a
esquerda, como Paulo Pinto Pereira bem frisou, e este é o ponto significativo.
Do que se trata, portanto, é que existem valores que alguma direita ainda defende
e que nenhuma esquerda jamais reclamará como seus. Esses valores são os que
estruturam o pensamento liberal. Vejamos quais são.
IV
Em primeiro lugar, a crença no
indivíduo possuidor de direitos naturais, inerentes à sua condição humana, e
não no indivíduo apenas detentor desses direitos se e enquanto cidadão, isto é,
como integrante de uma comunidade política estruturada num estado que lhos
reconhecerá e conferirá. De modo algum encontraremos no pensamento socialista a
convicção de um direito natural inerente ao indivíduo, que o estado tem de
respeitar, mas, quando muito, a de direitos individuais que o estado promoverá
e deverá garantir.
O direito natural é uma crença
liberal, mas não de todo o liberalismo, e uma convicção da direita, mas não de
toda a direita. À esquerda, nunca o será.
V
Daqui decorre, em segundo
lugar, a convicção de que o liberalismo tem a liberdade como um resultado da
interação estabelecida entre todos quantos compõem uma comunidade, acreditando
que eles são capazes de comporem os seus interesses e de criarem as
instituições que os assegurem ou reponham quando ameaçados ou postos em causa,
ao passo que, à esquerda, a liberdade é somente assegurada pela comunidade
transformada em status político, no fim de contas, pelo
direito à coerção de alguns sobre todos os outros.
Falamos, no fim de contas, nas
duas ideias basilares do liberalismo e do socialismo: o mercado e o estado; a
ordem social espontânea e a ordem social intervencionada por insuficiência
própria. Alguma direita acredita na primeira. Nenhuma esquerda será capaz de
fazer o mesmo.
VI
Depois, corolário necessário
dos dois anteriores postulados, a solene certeza de que existe sempre uma elite
dirigente que zela por todos nós, que intervém para corrigir o que de mal
fazemos e que cuida da nossa felicidade. A esquerda e o socialismo partem
sempre da necessidade, muito platónica, de um «governo de sábios»,
a confiar com algumas restrições, enquanto que a direita prefere a máxima popperiana de
um «governo de homens», a manter sob absoluta reserva. A esquerda
confia aos «sábios» a felicidade dos povos, porque considera que os homens não
a conseguem, por si mesmos, atingir, enquanto a direita desconfia dessas boas
intenções e, por isso, prefere que os «sábios» sejam vistos apenas homens
comuns, sujeitos às tentações e fraquezas de todos os outros.
VII
Em consequência de tão grande
convicção nas virtudes do governo, e avancemos para mais uma diferença
substantiva, a esquerda considera o Direito e a Lei como instrumentos
iluminados de ordenação social vertical, que devem ser apenas por si mesmos limitados: «Quod
placuit principi, legis habet vigorem», assim se citava Ulpiano nas Institutas de
Justiniano, máxima sempre invocada por quem defendeu a estatização dos países
da Europa Continental. Primeiro como direito divino dos soberanos, depois como direito
racional de déspotas iluminados, por fim, com a Revolução Francesa, como
direito das assembleias representativas da volonté générale.
À esquerda, o direito e a lei
serão, assim, sempre vistos como instrumentos de governação, para atingirem os
elevados fins da res-publica, enquanto que, nalguma direita, o
direito deverá ser a ordenação natural da coisa comum, a revelação
das normas de convivência pacífica na Grande Sociedade e os meios para a
contenção do grande Leviathan.
VIII
Deste conjunto de convicções
distintas e separadas resultará, para os socialistas de esquerda e de direita,
que todos os direitos individuais são necessariamente limitados por aquilo que,
momento a momento, o legislador e o poder soberano entenderem ser o bem
público, isto é, o interesse geral, excetuando-se algumas normas
constitucionais de rigidez cada vez mais atenuada. Em contrapartida, para todos
os verdadeiros liberais, que, quanto mais não seja, por exclusão de partes, só
poderão estar à direita, a propriedade de cada um sobre si mesmo,
os resultados que cada indivíduo atingir por si próprio, ao longo da vida,
são sagrados e devem ser intocáveis, porque incorporam a sua
personalidade e representam a dignidade do esforço e do trabalho individual,
noutras palavras, a própria vida humana. Por conseguinte, a esquerda vê no
imposto, tão mais alto quanto as necessidades declaradas pelo soberano assim o
exigirem, o seu instrumento principal de justiça social. A direita liberal
considera o imposto um mal, quase sempre inevitável, porque sempre reduzirá o
incentivo à produção e porque é sempre uma severa limitação ao direito de cada
um dispor de si mesmo, embora o possa admitir em certas e limitadas
circunstâncias, se obedecendo a limites rigorosos, limites esses que, desde a
Magna Carta de 1215, os povos civilizados vêm impondo aos seus governantes.
IX
Fica aqui por esclarecer o que
distingue a ideia de justiça social à esquerda e à direita. Deixando
enfaticamente de lado aquela nefasta treta de que «o coração está à
esquerda e a carteira à direita» - como se o socialismo tivesse o
monopólio dos bons sentimentos e das boas intenções -, assentemos num
princípio: todos queremos o melhor para os nossos concidadãos e para as
comunidades onde vivemos.
X
Assim sendo, o que nos distingue,
então? Mais uma vez, a crença no indivíduo: a esquerda entende que só com um
intermediário soberano – o estado – se pode redistribuir a riqueza, indo
buscá-la a quem a produz e entregando-a a quem a não tem; a direita liberal
afirma que só se pode distribuir o que existe e que para produzir a riqueza e
bem-estar o sistema capitalista de livre-mercado é o mais eficaz, porque
incentiva a produção, distribui melhor e mais igualitariamente os bens e
serviços produzidos, gerando, desse modo, mais prosperidade para um número
maior de seres humanos.
Porquê? Por muitas e diversas
razões. Mas, essencialmente, porque a estrutura da economia capitalista exige o
crescimento da riqueza e a sua distribuição por aqueles que serão os
consumidores que a vão manter e fazer crescer. Porque a falácia da
«concentração capitalista» de Marx é um disparate que nem nas economias
estáticas seria possível conceber, quanto mais em economias de mercado, onde a
competição pelas escolhas dos consumidores leva necessariamente ao aprimoramento
dos produtos e da produção, à inovação e à criatividade, obrigando a
investimentos sucessivos e constantes no sector produtivo, isto é, à
redistribuição do capital. Porque a concorrência não manipulada por governos e
políticos, pelo «capitalismo» de compadres dos amigos do BES, faz
necessariamente baixar preços e elevar a qualidade. Porque só o incentivo geral
do lucro legítimo, isto é, o obtido no livre-mercado – o lucro de quem produz,
que quer ganhar mais, e de quem compra e consome, que quer pagar menos e ter
melhor – pode fazer crescer uma economia, uma sociedade e, consequentemente, um
país.
XI
Em contrapartida, a célebre
economia de tributos altos, na qual Paulo Trigo Pereira acredita, desincentiva
quem investe, afeta recursos a quem nada contribuiu para criar riqueza –
políticos, burocratas e clientelas partidárias, principalmente -, entrega-os a
governos que os utilizam, inúmeras vezes, em destinos de que as pessoas não
carecem ou, pelo menos, não têm necessidade naquele momento, mas que eles
imaginam que lhes rendem simpatias e votos.
A racionalidade da decisão
política, não o esqueçamos, é o poder, não é o crescimento. De resto, bastará
olharmos para a realidade nacional, para concluirmos que a subida de impostos
dos últimos anos, ao contrário das intenções sempre declaradas, se fez
acompanhar, não de um aumento geral do bem-estar, mas do aumento da pobreza, do
desemprego, de precariedade laboral e de salários de miséria. Um país que
cativa uma tão elevada percentagem da riqueza nacional produzida anualmente
teria que ter melhor destino, a cumprirem-se os vaticínios das políticas
económicas socialistas.
Isto, obviamente, para já não
falarmos na apropriação indevida das riquezas cobradas aos portugueses, pela
via tributária, por políticos e banqueiros desonestos, que lhe têm acesso
fácil. Infelizmente, também aqui não têm faltado, nos últimos anos, exemplos
flagrantes.
XII
Poderíamos prosseguir, mas
estes são já bons argumentos para mantermos a dicotomia «esquerda-direita» e
para dizermos que o liberalismo se deve situar na segunda e nunca na primeira.
Não nos referimos, entenda-se,
ao liberalismo histórico francês e afrancesado ou ao atual «liberalismo»
americano, que eram e são manifestações de estatismo pueril, no primeiro caso,
e de socialdemocracia moderna, no segundo. Referimo-nos a um liberalismo que se
projeta no indivíduo, na propriedade, na cooperação, na criação e distribuição
de riqueza sempre à margem ou para além do intervencionismo do estado, na
justiça e numa igualdade social que advêm de uma sociedade mais próspera, mais
rica e com mais oportunidades para um cada vez maior número de pessoas.
À esquerda nunca encontraremos
quem defenda o conjunto destes valores. À direita ainda encontramos. Pensem
nisso!
Título, Imagem e Texto: Rui Albuquerque,
Delito de Opinião, 3-10-2017
PERFEITO, a direita se socializou no mundo, é só rótulo, por isso TRUMP e o apocalipse.
ResponderExcluirImagine se os EUA fosse comunista, a Coreia do Norte estava caladinha com o rabo entre as pernas.