Maria João Avillez
“A culpa é do governo anterior” dizia o
maestro Costa, fidelíssimo ao seu tique número UM de obsessivamente derramar
culpas inventadas sobre a governação a quem ele roubou a governação.
1. Há uma estranheza.
Um vento desconhecido. Um inconforto que se confunde com vergonha. Uma coleção
de irresponsabilidades políticas, desmazelos estatais, atos de irracionalidade.
É uma sensação pouco definível mesmo para quem lida com as palavras. Que vento
é este que sopra?
2. O país parece
capturado pela sua própria incapacidade de travar a roda da irracionalidade.
Como se as coisas subitamente se desgovernassem a elas mesmas e nada o comprova
melhor do que a história do jantar dos “modernos” no Panteão: haverá mais
irracional do que os grotescos episódios que de imediato se seguiram? “Ali não
há mortos”, dizia uma, como quem diz podem comer e divertir-se à vontade; “é
preciso respeitar os mortos” clamava outro, numa admoestação supostamente
respeitosa que La Palisse copiaria; “a culpa é do governo anterior” dizia o
maestro Costa, fidelíssimo ao seu tique número 1 de obsessivamente derramar
culpas inventadas sobre a governação a quem ele roubou a governação. Isto
enquanto a media punha o carrossel do comentário ao comentário a girar com vertigem
e a metade sã do país hesitava entre rir ou chorar.
3. É como se
estivéssemos diante de um escaparate onde se misturam comportamentos insólitos,
propósitos irresponsáveis, gestos disfuncionais como este agora de uma qualquer
brigada que entrou de rompante num velório, se apropriou do caixão e abalou com
ele. Sem mais.
A que ponto de
disfuncionalidade “administrativa”, digamos assim, se tem que chegar para que
um gesto violento de desrespeito máximo como este seja possível em 2017, na
capital de um país europeu (e não num subúrbio do Bangladesh ou numa
arrecadação do Burundi) é pergunta sem resposta. O melhor é culpar os outros,
mas a litania “do anterior governo” submerso de culpas que não teve, para tapar
tudo o que hoje corre mal, qualquer dia faz vomitar um ser normalmente
constituído (peço desculpa da horrenda expressão: está à altura do horrendo
tique em voga).
O certo é que com ou sem
vómito, há um permanente afastar de qualquer responsabilidade como quem enxota
uma varejeira incómoda. Ou há uma fuga. Ou um mergulho num estado de negação.
Uma pena só haver um Web
Summit por ano.
4. O balanço é
malsão: de um lado, quem interessa e quem conta para o trio político que diz
governar-nos; do outro, um país deixado de fora das prioridades, das escolhas e
das atenções do terceto político em causa. “Ah, não é do funcionalismo? Então
não vale!”. Quem sabe talvez não existamos e basta atentar-se na feitura tão
cirúrgica do Orçamento de Estado: estão lá bem impressos os dois países. Não se
percebe bem o que pensa o Presidente da República (sendo esta anomalia já tão indisfarçável)
sobre este mapa de Portugal com duas pátrias coexistindo tão desigualmente no
mesmo território. E ainda menos se sabe se ele aplaude que só um desses países
mereça o olhar benevolente e a benção dos deuses, sendo embora o primeiro
grandemente financiado pelo suor e o trabalho do segundo. Filhos e enteados
numa geografia social talhada na lei do “quem não é do funcionalismo público,
não tem direito de cidade”.
E um dia não tem mesmo: a
acidez vigente não devia ser permitida, faz mal a qualquer ser humano. A
acidez, o acinte, a desconfiança, a má fé (outra coleção) despejadas sobre quem
não é da geringonça, vigiando, punindo, desclassificando. Exagero? Olhe que
não, caro leitor, olhe que não.
5. Começam a ser
inquietantes as “descobertas” de algumas decisões obscuras da governação. Como
a última conhecida e não desmentida, assinada pelo futuro ou ex-futuro líder do
Eurogrupo (tão depressa Centeno vai como não vai, processo bizarro, que se
ressuscita ou se enterra conforme é conveniente puxar ou não pelos galões do
sempre risonho titular das Finanças). Rezam, porém, as notícias que Centeno
guardou a sete chaves os milhões deixados por Paulo Macedo para modernizar o
IPO, preferindo para eles destino eleitoralmente mais propício et pour
cause. Diz-me para que cativas, dir-te-ei quem és, e deste adágio não se
livra o ministro, tão eloquente ele é (o adágio). Não há desculpa, mas talvez
haja explicação, pois, a quadratura do círculo onde Centeno é obrigado (?) a
respirar explica quase tudo: de um lado alinhando com Bruxelas, do outro,
obedecendo, sem sombra de pecado, aos da geringonça. Os prejuízos estão já
aliás devidamente contabilizados. Só não são maiores ainda porque para matar a
fome de despesa da esquerda radical, justamente se “cativa”. Cativa-se em
detrimento de prioridades sérias e escolhas imperativas como seria cuidar do
IPO. Cativa-se porque facilita a vida, cativa-se para financiar a coleção de
exigências de um acordo político ruinoso.
6. O pior não é “isto”.
Não é haver muito país afogado em selfies e afetos, celebrando a geringonça e
os seus feitos, festejando quase com lágrimas de felicidade a dupla
Costa/Marcelo tão “culta”, “aberta”, “simpática”, “próxima”. É lá com eles (e
com os filhos que pagarão a conta dos feitos e afetos). O que me confunde é o
tão espesso silêncio do que sobra do mundo que não cabe nesse país.
Título e Texto: Maria João Avillez, Observador,
15-11-2017
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