Carlos Guimarães Pinto
O assunto está na moda. Não há
think-tank, jornal ou político iluminado que não fale do que aí vem: o
progresso tecnológico ameaça acabar com a necessidade de trabalho humano e
enviar-nos todos para o desemprego. Os mais excitados falam de um futuro em que
estaremos subjugados ao poder do grande capital que deterá os robôs com
inteligência artificial, escravizando a classe operária. Não falta então quem
sugira ideias geniais como a do rendimento básico incondicional (uma espécie de
RSI para todos) ou impostos sobre o rendimento dos robôs.
Estas teorias catastrofistas
assentam em três pressupostos. Primeiro, que estamos a assistir a uma
evolução tecnológica sem precedentes que levará à substituição de trabalhadores
por máquinas. Em segundo lugar, que esta evolução tecnológica não tem
precedentes na história da humanidade, que desta vez é diferente pela rapidez
com que acontecerá. Em terceiro lugar, que esta mudança será negativa para a
sociedade como um todo, especialmente para os mais pobres.
O problema com estas teorias é
a realidade. Comecemos pelo primeiro pressuposto. Se estivéssemos a assistir a
uma substituição sem precedentes de trabalhadores por máquinas, isso ficaria
evidente nos indicadores de produtividade. A produtividade, grosso modo,
corresponde ao volume total de produção dividido pelo número de trabalhadores.
Se o dividendo se mantém igual ou cresce e o divisor cai, então a produtividade
estaria a aumentar. Infelizmente, não é isso que está a acontecer: as economias
desenvolvidas estão num processo de estagnação em termos de produtividade desde
o início do século. A produtividade cresce a ritmos cada vez mais
baixos, ao contrário do que seria de esperar se estivéssemos num processo
acelerado de substituição de homens por máquinas.
Mas vamos ignorar isto. Vamos
então fingir que a produtividade é mal calculada e que na verdade está a
crescer a um ritmo acelerado. Ou então que há outros fatores não relacionados
que estão a contrabalancear o efeito da automação. Ou ainda que que a automação
ainda não começou a substituir trabalhadores humanos, mas que irá começar muito
em breve. Não falta quem aponte números: 50% dos empregos irão desaparecer nos últimos 50 anos. Será que isto é novo?
Podemos dar um passo atrás. Pensemos no mercado de trabalho nos anos 90:
quantos daqueles empregos existem ainda hoje? Quantos trabalhadores em 1992 se
fossem transportados no tempo para os nossos dias teriam o seu emprego tal e qual
o tinham? Ou, visto de outra forma, quantos trabalhadores hoje estão em
empregos que já existiam em 1992? Hoje temos muito menos bancários e mais
programadores. Menos empregados de mesa e mais operadores de call center. Menos
portageiros e mais hospedeiros. Mesmo os empregos que nominalmente se
mantiveram iguais, alteraram-se de forma tão substancial que dificilmente se
pode dizer que são o mesmo emprego (pensemos em jornalistas, por exemplo). Se
fizermos a análise entre 1992 e 1967 a diferença é ainda maior. No
entanto, para além das flutuações conjunturais é difícil identificar uma enorme
subida do desemprego em resultado do desaparecimento daqueles empregos. Se 50%
dos atuais empregos desaparecerem nos próximos 25 anos isso não será
necessariamente novo. Nem sequer, note-se, deverá causar desemprego temporário,
uma vez que 50% dos trabalhadores também deverá reformar-se nos próximos 25
anos. Apesar de tudo, o perfil dos jovens que hoje começam a sua
carreira é bastante diferente da média dos atuais trabalhadores. E certamente
diferente do que será daqui a 25 anos.
Por outro lado, a substituição
de trabalhadores é feita de forma lenta e gradual. O facto de uma tecnologia
estar disponível não quer dizer que venha a substituir imediatamente todos os
trabalhadores que pode substituir. Pensemos no caso da Via Verde que existe em
Portugal há mais de 20 anos. Durante este período, muitos empregos de
portageiro desapareceram. No entanto, os portageiros desapareceram do mercado
de trabalho mais rapidamente que os empregos nas portagens. Fruto disso, apesar
da Via Verde ser uma tecnologia madura, a Brisa ainda hoje contrata portageiros. Ou seja, uma tecnologia simples que
substitui empregados de forma direta e com poucos custos de implementação
falhou em substituir todos os empregados disponíveis para a profissão. Imaginem
agora o que será com tecnologias complexas como inteligência artificial ou
carros autónomos.
Para os portugueses que ainda
tenham dúvidas, há uma forma ainda melhor de ficar descansado. Portugal, como
um país atrasado no conjunto dos países desenvolvidos, tem a capacidade de
conseguir de antecipar o futuro, olhando para os países 20 anos à frente. É o caso
do Japão, o país com o maior número de robôs do Mundo, com um nível de automação a que
Portugal só conseguirá chegar daqui a 15-20 anos. E, no entanto, o desemprego é
praticamente inexistente. Com uma densidade de robôs vinte vezes superior
à portuguesa, o Japão praticamente não tem desempregados e os seus
trabalhadores queixam-se mais do excesso do que da falta de trabalho.
O terceiro argumento é de que
a automação, substituindo empregos manuais e pouco sofisticados, afetará
principalmente os pobres. Mais uma vez, contraria a história: o progresso
tecnológico é uma força equalizadora. O progresso tecnológico torna luxos apenas
disponíveis para os mais ricos em bens essenciais e generalizados. Pensemos em
algo que há umas décadas ainda era um luxo: água canalizada. Um membro do topo
da hierarquia no século XV teria acesso constante a água (trazida pelos
aguadeiros de serviço). Para pessoas no topo da hierarquia o aparecimento de
sistemas de água canalizada trouxe menos benefícios do que para os pobres (que
não podiam ter empregados a transportar água). O mesmo acontece com a
alimentação, a arte e o entretenimento. O progresso tecnológico (seja
ele na forma de água canalizada, máquinas agrícolas, televisões ou aviões)
beneficiou sempre desproporcionalmente os mais pobres. A água
canalizada tirou emprego a centenas (milhares?) de aguadeiros, mas foi o que
permitiu às classes menos afortunadas ter acesso a água.
Nesta altura da discussão, há
sempre alguém que se levanta e pede exemplos específicos de empregos que irão
substituir os atuais. Eu só consigo imaginar o desespero destas mesmas pessoas
se em 1930 lhes dissessem que daí a 50 anos, 3% dos trabalhadores seria
suficiente para produzir os bens alimentares de toda a população. Consigo
imaginar o seu desespero ao tentar imaginar onde trabalhariam os outros 60% de
trabalhadores que nessa altura se dedicavam à agricultura. A verdade é que hoje
não temos 60% de pessoas desesperadas de enxada na mão de porta em porta à
procura de trabalho. Tal como as pessoas em 1930 não conseguiriam
imaginar que empregos iriam substituir os empregos na agricultura, entretanto
automatizados, também para nós será difícil fazê-lo.
Uma boa forma de tentar
adivinhar que empregos serão esses é analisar a sua vida e pensar o que é que
gostava de ter e não tem. Em 1930 poucas pessoas faziam férias, jantavam fora
ou tinham acesso a entretenimento de qualidade. A simples ideia de que estas
seriam atividades normais mesmo entre a classe média baixa seria
ridicularizada. Mas isto é hoje uma realidade porque muitos dos recursos
humanos utilizados na agricultura foram automatizados e o seu esforço desviado
para a prestação deste tipo de serviços.
Em 2017, o que vos falta? A
mim salta-me logo uma tremenda necessidade presente e que tenderá a agravar-se
no futuro: o cuidado a idosos. O cuidado a idosos com problemas de
mobilidade é hoje caro e inacessível à maioria das famílias. Muitos dependem de
cuidadores informais ou são abandonados em hospitais. Com o envelhecimento da
população, o problema apenas tenderá a agravar-se. Será preciso
desviar muitos recursos de outros sectores para suprir todas estas necessidades
nas próximas décadas.
Nos anos 60 muitos previam que
as viagens espaciais se tornariam comuns no final do século. As pessoas da
minha idade cresceram a ver os Jetsons com a certeza de que quando fossem
adultos não teriam que realizar tarefas domésticas básicas. A verdade é que
hoje as viagens à lua são extremamente raras e lavar a louça extremamente
frequente. Enquanto tantos economistas se preocupam com a legião de
desempregados que a automação e robotização irão criar, talvez nós, pessoas na
casa dos 20-40 anos, devêssemos estar mais preocupados em que o progresso
tecnológico liberte recursos suficientes para um dia termos quem nos limpe o
cu. Ou então que nos próximos quarenta anos apareça um robô capaz de o fazer.
Suavemente.
Título, Imagem e Texto: Carlos Guimarães Pinto, Blasfémias,
10-12-2017
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